Corpo do artigo
A realidade não é exclusiva de Portugal, mas tem particular carga dramática neste país dito de brandos costumes. Os números da violência doméstica não cedem e mostram que este é um dos problemas mais sérios a exigir a atenção da sociedade e dos responsáveis políticos. Só na primeira metade deste ano, 1474 mulheres foram acolhidas na rede nacional de apoio às vítimas. Com elas, necessitaram de abrigo 1292 crianças, retiradas à normalidade e habituadas desde cedo à violência.
As desigualdades de género persistem em todas as dimensões da vida coletiva. No trabalho, onde as mulheres continuam a ser despedidas quando engravidam e a lidar com disparidades salariais. Na política, onde estão sub-representadas, apesar das quotas. Na família, onde carregam o fardo invisível das tarefas diárias. Partidos empenhados em defender um maior equilíbrio de género não têm falta de temas a pedir medidas e atenção política.
Não deixa, por isso, de ser surpreendente, perante tamanhos problemas reais, que um problema inexistente no país tenha merecido prioridade legislativa. A proibição do uso de burca, traje quase completamente ausente do nosso espaço público, vem mascarada de defesa dos direitos da mulher e de resposta a riscos de segurança, quando na verdade não é mais do que uma medida que acrescenta intolerância e ódio a um ambiente cada vez mais hostil para quem é visto como “o outro”.
Claro que a burca é um símbolo da opressão e da violência sobre a mulher que caracteriza o islamismo. Mas a resposta não é a proibição – uma proibição que poderá até ser inconstitucional –, desde logo porque a sua consequência imediata é penalizadora para a própria mulher que diz defender, limitando-a na sua mobilidade.
Que o Chega invente problemas onde não existem, reforçando estigmas e preconceitos, não admira. Mais inquietante é a forma como PSD ou IL alinham posições no mesmo sentido. O PSD tem atropelado muitos dos seus princípios basilares e consegue ziguezaguear, estando a especializar-se num hábil jogo de tabuleiro. Consoante as matérias, desvia taticamente as peças para diferentes balizas, separando medidas legislativas e conseguindo dessa forma aprovar tudo, sem ter de se demarcar do populismo à sua direita. É o que se prepara, mais uma vez, para fazer na Lei da Nacionalidade.
Pedindo as palavras emprestadas a Sophia, “Perdoai-lhes, Senhor, porque eles sabem o que fazem”.