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Na longínqua noite eleitoral de 2015, Jerónimo de Sousa, então secretário-geral do PCP, no seu discurso às vezes cifrado, redondo e repetitivo, deixou uma frase que só dias mais tarde, depois de recuperada, se entendeu em toda a sua plenitude. Passos Coelho acabava de ganhar as eleições, depois de quatro anos debaixo de um programa de resgate, e o PCP lembrou que, apesar disso, o "PS só não governa se não quiser". Na Soeiro Pereira Gomes as contas estavam feitas e, pela primeira vez em democracia, o partido mais votado corria o risco de não governar. O PCP, institucionalista, lembrou ao país que não elegemos um primeiro-ministro, mas que, no nosso sistema parlamentarista, elegemos deputados que depois viabilizam um Governo. Nada mais claro.
A história do que se seguiu já se sabe. A formação de uma solução de Governo que ficou conhecida como "geringonça" inverteu a ordem "natural" das coisas e colocou o partido derrotado no Governo e o vencedor das eleições na oposição. Até hoje.
Nessa altura, em Espanha - que atravessava uma situação parecida, com um bloqueio parlamentar para a investidura de um novo Governo, o PSOE, que parecia irremediavelmente condenado a uma erosão bastante rápida, tal como já tinha acontecido com partidos socialistas de outros países europeus, como a Itália, a Grécia e, sobretudo, França - a solução encontrada do outro lado da fronteira era um ovo de Colombo e permitia desfazer o bloqueio saído das urnas.
Aberto o precedente, a que muitos chamaram "golpe de Estado constitucional", mas que não passa de uma leitura cristalina e clara, levada à letra, do parlamentarismo, os eleitores perceberam que a "tradição" não escrita do "quem ganha governa" era já letra-morta. Na política não há tradição que valha quando está em causa uma possibilidade de chegar ao poder. Primeiro estranha-se, depois entranha-se e a geringonça governou durante quatro anos com estabilidade e paz social, com a ajuda involuntário de Cavaco Silva, o então presidente, que obrigou os vencidos a fazerem acordos escritos para que, dessa forma, desse posse ao Governo socialista com o suporte do Bloco de Esquerda e do PCP.
Em Espanha, depois das eleições de domingo, o cenário é exatamente o mesmo. O partido mais votado e os seus aliados naturais não conseguem maioria absoluta. E, nos discursos da noite eleitoral, Feijóo parecia o derrotado, pedindo ao PSOE para não "boicotar" a formação de um Governo do PP, e Sánchez, derrotado por "poucochinho", dava ares de vencedor, garantindo que os conservadores tinham sido derrotados.
Na simples aritmética dos votos, a esquerda (toda junta) tem mais mandatos que a direita somada. Sánchez sabe disso e terá de fazer pactos com o diabo - ou seja, com nacionalistas e independentistas - para poder governar. Como não lhes pode dar a possibilidade de referendos, nem lhes quer dar mais autonomia, que tem Sánchez para oferecer? Muito pouco. Mas a questão continua a colocar-se - deve um partido que perdeu as eleições, governar, ainda que para isso tenha de aceitar a chantagem, imposição e condições de pequenos partidos?
Não há, nestas soluções, nenhuma distorção da democracia. Pelo contrário. Trata-se do escrupuloso cumprimento da proporcionalidade dos votos depositados nas urnas.
Já não estamos a votar em partidos. Estamos a votar em blocos ideológicos. E, isso sim, acaba por ser um enviesamento da democracia. E um esvaziamento dos partidos. Que são o suporte da democracia. Depois é tarde para se estranhar. Fica entranhado.