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O facto mais relevante da década que amanhã termina parece-me andar esquecido: foi a forma como os políticos dos países mais ricos resolveram a crise financeira, que afetou todo o mundo e ameaçou atirar para a falência um grande número de bancos.
O que os políticos, os líderes mundiais, prometeram na altura, se bem se recorda, foi, antes de mais nada, salvar os bancos e as seguradoras cuja falência representasse um perigo sistémico.
Foi para salvar bancos demasiado grandes para falirem, como então se dizia, que os Estados injetaram, ao longo destes dez anos, direta ou indiretamente, a fundo perdido ou com imaginativos métodos institucionais, com prazos de pagamento e juros convenientes, milhões de milhões de euros dos contribuintes, que serviram para salvar o sistema financeiro norte-americano, europeu e asiático, bem como as suas ramificações globais nos países mais pobres.
Em cada país - de Bernard Madoff nos Estados Unidos da América a Ricardo Salgado em Portugal - foram encontrados um ou dois "donos disto tudo" para entregar à fúria da opinião pública.
Em troca desse esforço foi prometido aos contribuintes que os culpados pela irresponsabilidade financeira, que atirou milhões de pessoas para uma vida materialmente mais degradada (e muitas para a crua e simples miséria), seriam investigados, julgados e punidos.
Também foi prometido que os bancos centrais e as entidades reguladoras (que se revelaram não só ineficazes na fiscalização do sistema, como foram muitas vezes cúmplices dos seus erros e crimes) iriam ter os meios legislativos e materiais para atuarem com eficácia.
Foi-nos prometido, em suma, que este escândalo não voltaria a acontecer.
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E o que é que realmente foi feito, ao longo destes dez anos?
Em cada país - de Bernard Madoff nos Estados Unidos da América a Ricardo Salgado em Portugal - foram encontrados um ou dois "donos disto tudo" para entregar à fúria da opinião pública e acalmar o clamor que se levantara.
Os crimes financeiros que a revelação destes casos trouxe ao de cimo demonstraram, no entanto, que o mundo da finança não tinha apenas um ou dois casos de corrupção. Pelo contrário, a corrupção; a fuga ao fisco; a utilização suspeita de offshores; a lavagem de dinheiro; os pagamentos de salários e prémios exagerados aos gestores; os esquemas Ponzi; a compra e venda de ações sem critério; a cadeia de empréstimos recíprocos entre bancos e entre Estados e bancos; o financiamento de investimentos ruinosos e a atribuição de créditos irrecuperáveis eram práticas correntes, generalizadas e institucionalizadas em todo o mundo financeiro, que distorciam toda a economia mundial e tinham o apoio - tantas e tantas vezes subornado - de líderes políticos em posições-chave.
O que foi feito após a crise financeira não foi tentar curar o sistema.
E tudo isto continua, como todos percebemos.
É esta perceção de corrupção sistémica e generalizada na finança, na economia e na política que leva, na minha opinião, largos setores da população, muitos trabalhadores em todo o mundo, a decidirem o seu voto por políticos que prometem arrasar rapidamente com tudo isto. A eleição de Donald Trump é apenas o exemplo mais notável desse fenómeno.
Mas esses políticos são também filhos do mesmo regime e, por isso, a limpeza que prometem nunca acontece de facto - é feita apenas uma maquilhagem, mudando algumas pessoas e algumas leis, que rapidamente se descobrem ineficazes.
O que foi feito após a crise financeira não foi, portanto, tentar curar o sistema.
O que foi feito foi reconverter o sistema para ele ficar ainda mais forte e menos dependente do poder político e da pressão da opinião pública.
É verdade que foram aplicadas medidas de combate à lavagem de dinheiro e de transparência da atuação da banca mas, ao mesmo tempo, os bancos maiores começaram a comprar os bancos mais pequenos - aumentando a concentração monopolista do setor e diminuindo o poder dos países que ficaram sem bancos nacionais, como está a acontecer na União Europeia. Nessa Europa os bancos centrais ficaram com menos poderes, em favor do Banco Central Europeu, o que significa que as pessoas que mandam nos bancos e as que realmente regulam a banca passam a estar lá longe em Bruxelas, ainda menos acessíveis que os anteriores "donos disto tudo" que cada país tinha.
A próxima década será, mais uma vez, uma década determinada pelo comportamento da circulação do dinheiro no mundo.
Por outro lado, começaram a ser autorizados e a ser frequentes serviços financeiros virtuais, apenas geridos pela internet, que tornam obsoleto todo o quadro legal e regulatório, entretanto criado, e põem em perigo a sobrevivência da banca tradicional - que, entretanto, já está a integrar em si própria este novo negócio.
Até moedas sem qualquer suporte físico permitem ou irão, inevitavelmente, permitir fazer tropelias financeiras muito mais perigosas e suspeitas do que as que originaram a crise de 2008, que determinou como o mundo enfrentou esta década que agora termina.
O problema do sistema financeiro é, para mim, o maior problema da humanidade - todos os outros (alterações climáticas, migrações, fome, desigualdades sociais, ódio racial ou de género, entre muitos outros) ou são provocados, direta ou indiretamente, pela ganância deste sistema ou não têm solução à vista pelo bloqueio que este sistema faz à acção política direcionada para o bem comum.
Conhecendo esta história, que repete histórias de décadas e décadas anteriores, fazer previsões para a próxima década é, quanto a mim, muito simples: a próxima década será, mais uma vez, uma década determinada pelo comportamento da circulação do dinheiro no mundo. E é só.