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Um primeiro-ministro também tem direito a ter sono, a estar cansado, irritado e, portanto, a fazer uma birra.
Depois de 14 horas de reunião de conselho de ministros da União Europeia, Costa, o homem, respondeu torto. Quando lhe perguntaram se tinha telefonado a Carlos Moedas, presidente da câmara de Lisboa, por causa das cheias na capital, Costa, cansado, com sono e irritado disse, com uma expressão "imprópria", como mais tarde haveria de reconhecer, que quem deveria ter-lhe ligado a ele era Moedas, porque também ele, Costa, teve a "casa inundada".
Na verdade, não só a casa de António Costa não ficou inundada como, garantem os vizinhos, a água só chegou às garagens e não estava lá, na ocasião, nenhuma viatura da família Costa.
Na resposta à irritação de António Costa, Carlos Moedas disse-lhe que estava preocupado com os lisboetas, que esteve ao lado dos lisboetas, que tinha tido muito que fazer nessa noite e que isso dos telefonemas era o que menos o preocupava. Do ponto de vista institucional, vários ministros telefonaram a dezenas de autarcas para saber como estava a situação e deixarem palavras de conforto. Ao presidente da câmara de Lisboa, o primeiro desses ministros não só não ligou, como ainda ficou à espera de um telefonema de conforto por também ter tido "a casa inundada".
Durante dias, a chamada bolha político-mediática e, por meio dela, o país ficou a saber da falta de comunicação entre o autarca de Lisboa e o chefe do Governo. A pergunta, aqui, não é sobre quem deveria ter telefonado a quem, mas sobre se esse é um tema que tem relevo para o país. Com metade da área metropolitana debaixo de água, prejuízos de milhares de milhões, negócios que foram ao fundo, casas alagadas e uma capital intransitável, com as autoridades a pedirem aos cidadãos para ficarem em casa, escolas fechadas, ruas cortadas, árvores tombadas, carros levados pela água como se fossem uma casca de noz no oceano, a discussão de salão ficou-se pelo tema do telefonema que ficou por fazer. Ou, pior, de quem deveria ter tomado a iniciativa de telefonar a quem. Se o presidente da câmara ao cidadão António Luís, lisboeta como os outros, se o primeiro-ministro ao Presidente da Câmara da cidade mais afetada.
Politicamente, o tema tem relevância. A falta de solidariedade, ou de preocupação, ou de atenção, de um governo com o autarca da cidade capital é muito mais do que uma birra de sono, uma irritação depois de 14 horas de reunião ou uma "expressão infeliz" de um governante cansado. É uma (não) tomada de posição. É oposição. E o governo não deve fazer oposição, muito menos a câmaras municipais. Foi eleito para governar, para tomar decisões, para estar ao lado dos autarcas, também legitimamente eleitos. Nas últimas cheias de Lisboa, era outro o autarca mas era o mesmo o primeiro-ministro, e o tratamento institucional não foi exatamente o mesmo. Lisboa não é de Moedas, como não era de Medina. É dos seus cidadãos, de quem lá vive e trabalha.
António Costa esteve bem, quando pediu desculpa por aquilo a que chamou «um aparte irritado», admitindo que «não o devia ter feito». Pedir desculpa começa a ser muito comum na política portuguesa. O que quer dizer que o erro também se tornou comum. Mas, se repararmos, o primeiro-ministro não lamento não ter telefonado ao Presidente da Câmara. Pediu apenas desculpas pelo tom e pela forma com que deixou escapar a irritação. Ou seja, repudiou a forma, não se retratou no conteúdo.
Um telefonema - entre os dois, independentemente de quem marca o número primeiro - teria feito diferença? Na prática, não. Na qualidade da democracia, certamente que sim.
