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A forma como os portugueses estão a reagir à ameaça do coronavírus mostra o melhor da nossa sociedade mas, também, infelizmente, evidencia o lado negro da maneira como nos relacionamos e, até, da maneira como nos organizamos: há uma maldade irresponsável que vem à tona, de forma muitas vezes surpreendente, capaz de destruir o bom senso coletivo, a vontade de cada um de ser solidário com os outros, o respeito pela prudência e pelo cuidado individual que, em nome de todos, a hora exige.
Tal como o Covid-19, a sobrevivência coletiva depende da forma como nos defendemos da propagação do vírus da maldade.
O primeiro sintoma desse vírus da maldade é o constante boato.
São textos de neuróticos, obsessivos, a insistirem em espalhar a sua doença pelas redes sociais.
Começou com os boatos moralistas, sentenciados em milhões de publicações no Instagram, no Facebook, na WhatsApp ou no Twitter.
Um deles talvez tenha começado por alguém que inveja a alegria juvenil e que decidiu publicar uma fotografia antiga de uma multidão de jovens a divertirem-se, numa rua de bares do cais do Sodré, como se a cena se passasse na sexta-feira passada e fosse um desrespeito ao pedidos das autoridades para reduzirem o contacto social, a fim de diminuir a propagação do coronavírus. Era mentira.
Outra faceta desta maldade antissocial, que se espalha como um vírus, são as constantes acusações aos outros e a tentativa de nos convencerem de que chegámos a uma desorganização total.
Até o treinador Jorge Jesus se enganou e disse ter um amigo que morrera pela infeção do vírus.
São textos de neuróticos, obsessivos, a insistirem em espalhar a sua doença pelas redes sociais: que o governo é criminoso porque não decreta já uma quarentena total e geral; que a Direção-Geral de Saúde e os hospitais andam a esconder informação grave; que os jornais, as rádios e as tvs são cúmplices dessa conspiração e não contam a verdade sobre o número de ocorrências e de mortes no país. Tudo mentira.
É inevitável, de facto, que ocorram mortes em Portugal por causa do coronavírus, mas, até ao momento em que escrevo, tal não aconteceu. Isso não impediu que, já por várias vezes desde a semana passada, alguns sádicos tenham difundido nas redes sociais falsas informações de falecimentos, levando mesmo um ou outro órgão de comunicação social a noticiá-los erradamente. Até o treinador Jorge Jesus se enganou e disse ter um amigo que morrera pela infeção do vírus(*). Era mentira.
Este vírus da maldade é mais do que ridículo, é mesmo perigoso.
E há embustes que surgem sem sequer se perceber porquê, mas que são igualmente maldosos, descredibilizam pessoas e instituições e, por isso, são um vírus tão perigoso quanto as mentiras produzidas por malucos ou por quem tenta aproveitar a gravidade do momento para ver se consegue rebentar, de qualquer forma, com o regime: que Cristiano Ronaldo ia transformar hotéis em hospitais, que beber água com limão previne o coronavírus, que a Unicef aconselha a não comer gelados, que o Papa tem coronavírus, que a cocaína mata o coronavírus, que a doença foi criada em laboratório no Canadá e levada para China ou que foi uma sopa de morcego que provocou isto tudo. Tudo mentiras idiotas, que persistem em circular pelos nossos telemóveis.
Este vírus da maldade é mais do que ridículo, é mesmo perigoso.
A falta de dinheiro, a ansiedade, o medo do futuro pode descontrolar as nossas emoções.
Vamos estar sujeitos a uma restrição dos nossos hábitos durante, pelo menos, dois meses, talvez mesmo três. Haverá fases em que as restrições à nossa liberdade serão muito difíceis de suportar.
A paciência necessária com que teremos de enfrentar o isolamento, a diminuição de relações sociais, o tempo que custa a passar, será muito maior do que aquilo que conseguimos, hoje, imaginar.
A falta de dinheiro, a ansiedade, o medo do futuro pode descontrolar as nossas emoções.
Muitos de nós poderão de ter de enfrentar o desgosto de ver pessoas amigas ou familiares a, apesar de todo o esforço que estamos a fazer, acabarem por morrerem vítimas do Covid-19.
O vírus da maldade, que insiste em espalhar-se por todo o lado, contamina pessoas que, dia a dia, à medida que progridem a quarentena e as restrições de circulação, se sentem mais cansadas, mais desprotegidas, mais desconfiadas, mais ansiosas e mais deprimidas.
Este vírus da maldade, aproveitando a fragilidade em que as pessoas se encontram, pode levá-las a uma revolta injustificada, à descrença, à irresponsabilidade.
Este vírus da maldade, se prevalecer, pode, com o tempo, originar o verdadeiro caos.
Este vírus da maldade pode levar, por exemplo, as pessoas a desistirem do isolamento e da quarentena precisamente na altura em que o Covid-19 estiver mais ativo em Portugal, pode levar as pessoas a recusarem ajudar os mais idosos como generosamente muitos agora se oferecem, pode levar as pessoas a desconfiarem do Serviço Nacional de Saúde que, ainda no sábado à noite, num gesto tão bonito, decidiram, aplaudir.
Este vírus da maldade, se prevalecer, pode, com o tempo, originar o verdadeiro caos, disseminando uma anarquia descontrolada que levará muitas mais pessoas a serem contaminadas e a morrerem pelo Covid 19.
Este vírus da maldade, numa situação de vida ou de morte como a que vivemos, é um perigo que, se queremos sobreviver, temos de combater e controlar.
Espero que os meus camaradas jornalistas, que em todo o país têm feito um trabalho fantástico, se mantenham na linha da frente desse combate: em Portugal publicar hoje, sistemática e prolongadamente, a verdade; confrontar as autoridades duramente mas com lealdade e justiça; desmentir com alarido toda e qualquer falsidade que corra por aí; é mais do que serviço público, é mesmo salvar vidas.
(*) Esta informação foi escrita antes da notícia da ocorrência da primeira morte por COVID-19 em Portugal, na tarde de dia 16 de março de 2020: um homem de 80 anos que, de facto, era amigo do treinador Jorge Jesus
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