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Esta semana, o parlamento vota, mais uma vez, a lei da morte medicamente assistida, vulgarmente designada por eutanásia. Marcelo já reprovou o diploma, primeiro com um veto político, depois com outro, constitucional. Já disse claramente o que pensa e deixa, agora, de estar nas mãos de Belém a possível atribuição de mais um direito. Um direito que hoje não temos e que, no futuro, podemos vir a ter. O direito a pedir para morrer, em determinadas circunstâncias.
Desta vez, pelo menos, não se pode dizer que se trata de uma lei apressada, feita em função de pressões, fruto de um contexto específico ou, no limite, uma batalha de alguns deputados ou partidos.
Há anos que se discute o tema e há anos que o tema, por ser fraturante, divide a sociedade, os partidos e as consciências. Ter direito a pedir para morrer é um passo significativo na lei. E, por isso, por uma vez, esta lei, se for aprovada, deve ser perfeitamente clara, inequívoca, taxativa, sem margem para interpretações, recursos ou pareceres. Por uma vez, a escolha das palavras e do que elas querem dizer deve estar de acordo com aquilo que «o legislador» pensa, qual é a sua intenção, como se aplica a lei. Ou seja, deve ficar absolutamente explícito quando, como, em que circunstâncias, com que mecanismos de decisão, quem valida e quem aprova. E quem executa.
Independentemente da legitimidade que o parlamento tem - e, quanto a isso, não há dúvidas - para legislar nesta matéria, o tema vai, a meu ver, muito mais fundo do que uma simples divisão esquerda/direita, católicos versus agnósticos ou ateus, progressistas contra conservadores, defensores do direito inviolável à vida ou os que entendem que a morte antecipada não é mais do que evitar vidas sem dignidade, sem esperança e com uma dor e um sofrimento impossíveis de imaginar. Esta é um a lei que mexe com o mais íntimo de cada um de nós, para lá da ideologia, da religião, da postura perante a sociedade ou perante o outro. É uma escolha individual, que resultará, muito mais da vivência próxima de cada um de nós, dos casos que presenciamos ou de que fomos parte entre familiares e amigos próximos. Por isso, repito, mais do que ideológica, religiosa, social ou convencional, é uma escolha individual. De cada um. Na nossa solidão, na nossa experiência, na nossa vontade, até, de decidir o que queremos que façam connosco quando não quisermos continuar a (sobre)viver.
Não vejo, por isso, nenhuma razão válida para que esta lei não seja alvo de um referendo. Uma consulta popular, que nos pergunte, a cada um, através de voto secreto, livre, individual e solitário, o que queremos para nós. Sobretudo para nós.
É tarde para um referendo?
Politicamente, é. Socialmente, não.
Mas não digo isto apenas por causa da morte medicamente assistida.
Em Portugal, a democracia, que já tem 50 anos, tem medos dos referendos. Tem medo de escutar a vontade popular. Tem receio de que o que pensa o povo não coincida com o que pensam os seus representantes, as suas elites.
Noutros países, mais evoluídos, sem medo do voto direto, secreto e universal, referendam-se, por ano, dúzias de decisões bem menos importantes: se se deve, ou não, construir aquela estrada naquele local, que nome deve ter uma nova praça, onde vai ficar localizada a escola ou o parque desportivo. São, na maioria, referendos municipais ou distritais, mas que aproximam eleitos e eleitores. Porque os cidadãos são parte da decisão.
Em Portugal e no nosso atraso, fazer um referendo parece uma tarefa do outro mundo, um esforço gigantesco, uma maçadoria desnecessária e uma perda de tempo.
Não é. Basta fazer uma pergunta bem feita. Marcar o dia, contar os votos e está tomada a decisão.
Chama-se democracia.