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Chama-se «revisão constitucional» ao ato legislativo de alterar a constituição. Desde que existe, já foi mudada umas quantas vezes. Uma das mais profundas e drásticas alterações foi em 1982, com o fim do conselho da revolução e o fim da militarização da lei fundamental. Outras se seguiram, quer para acomodar as exigências da então CEE, quer para «limar arestas» que, com o tempo, se tornaram rombas. Mas, no essencial, a constituição é basicamente a mesma.
De quando em vez, o tema aparece no discurso dos políticos, usado muitas vezes como arma de arremesso para quem nada mais tem a propor. E, portanto, quase nunca acaba por se avançar para a tal «revisão». Ou porque não é o momento, ou porque estamos perto de eleições, ou porque há quem ache que ela está muito bem como está. Ou, simplesmente, porque há outros temas mais urgentes, importantes ou decisivos.
Há sempre temas mais importantes e urgentes. Os portugueses não comem a constituição e, com a crise, a economia de guerra e a inflação, desta vez haveria mais uma desculpa para adiar a revisão.
Nada mais errado.
O debate deve fazer-se com tempo - faltam quatro anos para acabar a legislatura - sem ser em vésperas de eleições, e com condições de «estabilidade política» de forma a que a discussão não fique inquinada pela partidarite e pelos temas que estão «a dar» no momento.
Já que vai haver revisão, era bom que, por uma vez, não fosse apenas uma isso. Ou só isso. Rever. Limar arestas, maquiar temas, ou uma discussão cirúrgica a temas como o dos metadados ou os confinamentos.
O desafio deveria ser o de fazer uma revolução. Adaptar o texto aos dias de hoje, expurgar dele o que há 40 anos fazia todo o sentido, mas que o tempo se encarregou de tornar obsoleto. Retirar referências ideológicas que se compreendiam à luz de um país acabado de conquistar a liberdade, mas que já não se encaixam depois de consolidado que está o processo democrático. Enquanto representantes dos portugueses, de todos os portugueses os deputados da Nação têm obrigação de representar as diversas sensibilidades sociais e ideológicas de quem os elegeu. Na proporção em que foram eleitos. Mas este não deveria ser critério único. Para além das diferenças ideológicas, salutares e democráticas, a constituição não deve ser um repositório dos diversos programas dos partidos, mas um documento acima deles, que olhasse de forma igual para cada cidadão, independentemente do partido em que escolhe votar em cada eleição.
Temo, e lamento por antecipação, que a discussão que aí vem acabe fechada, irredutível, entrincheirada e radical. Se assim for, teremos perdido mais uma oportunidade de uma revolução em vez de uma simples revisão. PS e PSD, por esta ordem de grandeza, dada a natureza do momento, têm especiais responsabilidades no processo. Um precisa do outro para aprovar qualquer alteração que seja. E, portanto, os dois partidos do grande centro, que vão do centro-esquerda ao centro-direita, que (ainda) representam uma larguíssima maioria dos portugueses, têm obrigação de se entenderem no essencial, de não utilizarem este processo como tira-teimas, eleições primárias ou referendos às respetivas lideranças. O tempo é demasiado sério, o panorama demasiado incerto e o futuro demasiado imprevisível para que quem, de facto, pode alterar a lei fundamental, não leva a tarefa a sério.
Não, os portugueses não comem a constituição. Mas se a democracia não for cuidada todos os dias, pode morrer. E, mesmo que não dê votos imediatos, mesmo que o tema seja árido e pouco estimulante para a maioria dos portugueses, a lei fundamental não deve ser deixada ao capricho e ao acaso.
Serão capazes?
