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Há poucos dias, em pleno período do mundial de futebol, fui convidado para apresentar o último livro do jornalista Rui Miguel Tovar: Lembrar um Mundial para Esquecer. Não, não é um livro premonitório deste último mundial (é verdade que chegámos aos quartos de final, mas a verdade é que soube a pouco e toda a participação teve um sabor amargo). O pretexto do livro é o mundial na Coreia do Sul que muitos recordam quer pelo jogo em que João Pinto socou um árbitro quer pela surpreendente eliminação de Portugal na fase inicial e perante equipas alegadamente inferiores. Mas o livro acaba por ser uma história da seleção nacional até esse mundial, incluindo outros desastres como Saltillo. Para além de, como é comum em Rui Miguel Tovar, ser um livro muito bem escrito, entre crónicas literárias de futebol e crónicas policiais, o livro expõe de forma clara o amadorismo que dominou a organização da seleção até esse período.
A certa altura, na conversa com o autor, perguntei o que explicava a mudança que ocorreu desde então. A resposta: Ronaldo. Não apenas, nem sobretudo, o talento desportivo que ele ofereceu à seleção durante muitos anos. O mais importante foi o dinheiro e o profissionalismo que trouxe. Não sei quantos portugueses têm consciência de quão pobre era a federação portuguesa de futebol antes de Ronaldo e a diferença que fizeram os patrocinadores que passaram a querer associar-se à seleção de Ronaldo. Uma seleção que antes tinha de escolher os estágios em função de quem pagava as despesas passou a poder ter condições de trabalho semelhantes às dos países mais ricos. Ronaldo trouxe também para a seleção o profissionalismo que impõe a si mesmo e aos clubes onde joga. É isto que explica que um país que até então só tinha ido a uma fase final de um campeonato do mundo tenha passado a estar presente em todas as fases finais de mundiais e europeus.
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É também isto que explica a minha perplexidade pela forma como, num instante, a maioria da opinião do país se virou contra Ronaldo. Começou antes do mundial. Ronaldo passou de imprescindível a principal obstáculo ao sucesso. Não quero entrar no mérito desportivo desta questão. O que me chocou foi a forma como se passou a tratar publicamente Ronaldo. Apareceram também velhas histórias de alegados tratamentos de favor dentro da seleção, nunca antes reveladas. Multiplicaram-se as críticas à sua personalidade: a confiança e determinação de antes são agora apresentadas como arrogância e teimosia. Isto diz mais do país do que diz de Ronaldo. Seguramente que Ronaldo não é um santo e que não está, nem nunca deveria ter estado, isento de escrutínio. É legítimo perguntar-lhe sobre os casos jurídicos em que se viu envolvido e cada um de nós pode, com base na informação disponível, ter uma opinião sobre isso. Mas é quase chocante a transformação a que assistimos no tratamento mediático de alguém que ofereceu tanto ao país e que o país tratou como um modelo durante tanto tempo.
É verdade que Ronaldo não tem gerido da melhor forma a sua carreira e comunicação nesta fase. Mas isso exigia da nossa parte compreensão e apoio. Devíamos-lhe isso. Em vez disso para alguns parece uma oportunidade para se vingarem do sucesso de Ronaldo.
Tudo isto alimenta um ciclo vicioso em Ronaldo. Acho que a frustração que crescentemente exprime é a consequência da incompreensão de que se sente alvo, o reverso do tanto que ele investiu pessoalmente no seu e nosso sucesso. Não existe limite ao esforço e dedicação a que Ronaldo está disposto e ele esperava que o sucesso, e o nosso reconhecimento, fossem sempre proporcionais a esse esforço e dedicação. Não são. Nem sempre a vida é assim.
Ao contrário do que muitos dizem não é certo que Ronaldo esteja desportivamente acabado, destinado a ir apenas ganhar milhões, mas não troféus, num clube das arábias. Basta ver como jogou Modric neste mundial com a mesma idade (e sem as condições físicas de Ronaldo) para perceber que o tema pode ter mais a ver com a cabeça do que com o físico. Pode ter mais a ver com a incapacidade de perceber que terá de ter um papel diferente do que com uma real incapacidade física. Ronaldo tem de perceber que este é o momento de preparar uma nova forma de ter sucesso que pode exigir que mude dentro e fora do campo.
Nós, devíamos-lhe apoio nisso. Mas o que vi foi, sobretudo, abandono quando não desdém. Espero que o Ronaldo volte a encontrar o sucesso, se possível ainda dentro do campo, mas se não fora dele. Tem a ética de trabalho e compromisso que são fundamentais para isso. Espero também que os portugueses se voltem a reencontrar com Ronaldo. Tenho mais certezas do primeiro do que do segundo e isso é o maior elogio que podia fazer ao Ronaldo.