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Daniel Oliveira tem assistido com especial interesse à forma como é analisado o papel do pirata informático Rui Pinto, responsável por várias revelações, do futebol à corrupção em Angola, e admite mesmo que "o Luanda Leaks levanta questões complicadas".
Para o jornalista, ouvido no seu espaço de opinião habitual na TSF, "tudo o que envolve hackers levanta várias questões morais e jurídicas bastante complicadas", já que se pode discutir "se damos ao privado direitos que sempre recusámos ao Estado - e bem -, se damos acesso irrestrito à privacidade de toda a gente, se damos a possibilidade aos hackers de selecionarem os seus alvos, de decidirem quem investigam e quem não investigam".
Existe ainda a possibilidade tantas vezes enunciada: "Podem estar a soldo de alguém, muito facilmente farão chantagem."
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Mas, para o jornalista, o Luanda Leaks e o envolvimento de Rui Pinto nesta divulgação também relança a reflexão sobre a responsabilidade dos Estados. "Do outro lado da balança, se desistimos do combate à corrupção, e se, com os instrumentos que hoje o crime tem - e alguns são dados pelos Estados, como os offshores -, os instrumentos que tínhamos eram suficientes", questiona Daniel Oliveira, que ainda atira outra dúvida: "Se tendo a informação, como temos agora a dos Luanda Leaks, a ignoramos?"
Eu estou habituado a ter pouca companhia na defesa do direito à privacidade, incluindo dos corruptos.
"Se a ignorarmos", prossegue, ainda se pode debater "se isso não ajuda a que se instale, na população, uma descrença na justiça e na democracia". Neste sentido, trata-se, como argumenta Daniel Oliveira, de um "debate bastante difícil", em que têm de ser equilibrados "valores diferentes, incluindo saber, por exemplo, o que pode ser usado de entre a informação que recebemos, o que já está envenenado - na expressão que os juristas costumam utilizar, a "árvore envenenada" -, se podemos colher um fruto de uma árvore que já está envenenada à partida pela ilegalidade".
Só que este impasse, alega ainda, "não se resolve nem com a enunciação de princípios gerais que não têm em conta esta nova realidade, nem na demagogia fácil que nos acompanha de escolher alvos fáceis mas que não defende o Estado de direito". Por estes motivos, Daniel Oliveira tem acompanhado este tema, pela "complexidade" que tem, com "bastante interesse", com particular atenção à forma "como se divide a opinião pública".
Por estes motivos e por outros: Daniel Oliveira admite que certas reações lhe têm causado espanto. "Eu estou habituado a ter pouca companhia na defesa do direito à privacidade, incluindo dos corruptos. Não costumo sentir-me acompanhado, pelo contrário, e muito menos nas redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais."
Percebi rapidamente que o grande problema é que Rui Pinto não é muito apreciado pelos benfiquistas.
"A posição unânime costuma ser a de que corruptos não têm direitos, criminosos não têm direitos, suspeitos não têm direitos", sustenta. Com o Luanda Leaks, é diferente, refere. "Subitamente, sinto-me no país mais sensibilizado do mundo para o Estado de direito. É uma coisa que me tem comovido, sinto uma enorme companhia, talvez até companhia a mais..."
O jornalista defende, então, que a recusa em analisar a informação divulgada pelo Luanda Leaks com espírito crítico e vontade de combater a corrupção é resultado da resistência generalizada ao pirata informático que denunciou o Benfica. "Comecei a imaginar que poderiam ser admiradores de Isabel dos Santos, mas não devem ser assim tantos. Percebi rapidamente que o grande problema é que Rui Pinto não é muito apreciado pelos benfiquistas", frisa.
No outro lado da "clubite" também mora a "incongruência", aponta o cronista. "Também é interessante ver Miguel Sousa Tavares, que, há sete anos, escreveu n'A Bola que quem aceita escutas sem controlo judicial defende o regresso ao regime político anterior e não pode defender o Estado de direito - estava evidentemente a falar do Apito Dourado -, agora defende que Rui Pinto deve ser condecorado e que até deveria ser ele a dirigir as investigações para material que nem acompanhamento policial teve na sua recolha."
Estas "incongruências" a que assiste, de um e outro lado das trincheiras, "demonstram que a clubite é provavelmente a maior doença nacional".
A clubite tem um poder que anos e anos de tentativa de explicação de Estado de direito nunca poderiam ter.
Apesar de ser este um debate para o qual não tem resposta, algumas opiniões têm merecido a reflexão do jornalista. Daniel Oliveira destaca o texto de André Lamas Leite, no jornal Público , onde escreve que "claro que se pode começar uma investigação a partir do que vai saindo, que se pode tentar ir à mesma fonte", por isso fica a questão do que se pode usar ou não", e que tal espoleta um debate "acima de tudo jurídico", mas que depois desagua num segundo dilema: "se o ponto em que estamos entre o direito a descobrir a verdade e os direitos, liberdades e garantias das pessoas, se o equilíbrio entre os instrumentos de que hoje dispõe e os instrumentos do Estado é o certo".
Daniel Oliveira deixa pois claro que considera que este é um "debate complicado, em que ser do Benfica, do FC Porto ou do Sporting não deveria interessar", e lamenta que a "clubite" contamine "de uma forma absolutamente descarada" a discussão.
Todas estas incoerências, remata, "dizem mesmo que a clubite tem um poder que anos e anos de tentativa de explicação de Estado de direito nunca poderiam ter".
* Texto redigido por Catarina Maldonado Vasconcelos