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Anda por aí certo líder a fazer passar-se por um novo Sá Carneiro.
A receita não é nova, mas este chefe partidário, com traços de arruaceiro de recreio escolar, cita-o amiúde, com frequência mal, e gosta de plantar na cabeça do eleitorado a ideia de que agora é ele quem ocupa, politicamente falando, o lugar do morto.
Tais narrativas só são possíveis em tempos de memória coletiva moribunda e em que a verdade perdeu valor facial.
Um dia perguntaram a Sá Carneiro o que faria com certa direita. O fundador do PPD/PSD garantiu que nunca reconheceria "forças reacionárias que hostilizam os princípios democráticos". E acrescentou: "Temos de saber merecer o respeito e a credibilidade do Povo, sem o que este passará a acreditar apenas em pessoas e a esperar salvadores".
Sá Carneiro, que nunca buscou a santidade - nem a mereceu, diga-se - sempre soube que a fidalguia, certo conservadorismo de fancaria e as elites de mentalidade bolorenta, eram lenha velha para deitar ao lume. A expressão é dele.
Ao contrário de quem puxa do terço para instalar o inferno na terra e se diz enviado de Deus para propagar o ódio, Sá Carneiro era, no dizer da inimitável Natália Correia, "um homem que, mesmo na tenda das guerras políticas, favoreceu o amor como réplica de eternidade".
Sá Carneiro contribuiu para a libertação de presos políticos durante a ditadura e nem meio Salazar tolerava. Mesmo assim, já em democracia, ainda lhe chamaram "Führer
de feira" e até Vasco Graça Moura trocou a poesia pela prosa bruta: acusou-o de ser um homem odioso, com tiques nazis. É caso para perguntar o que diria hoje se visse e ouvisse o que sai da bancada do "nacional-tabernismo".
O bispo Januário Torgal Ferreira, amigo íntimo do fundador do PPD/PSD, disse-me um dia, numa longa conversa, que muitos se colaram a Sá Carneiro sem estimarem a democracia e que a extrema-direita de 1975 só não o matou porque não pôde.
A nova extrema-direita mata-o agora, de novo, quando o recicla para a sua narrativa populista, excludente e persecutória.
Já a direção do PSD, na sua versão contrafeita à moda da feira de Espinho, assiste a tudo, calada e cúmplice, desonrando o seu passado e sem levantar a voz em nome do que ainda resta de social-democracia. Dá ideia, pois, que o partido do Governo se transformou numa espécie de braço político do nacionalismo taberneiro: enfrascado com a convivência, talvez agora precise de ser arrastado em ombros.
