Sabe por que temos todos vozes diferentes? E qual o segredo para não ficar sem voz?

Maria Caçador é otorrinolaringologista e coordenadora da consulta de voz do Hospital Cuf Infante Santo
DR, cortesia de Maria Caçador
"Até que a voz me doa" é uma expressão que todos conhecemos. Mas pode, de facto, a voz doer? Maria Caçador, otorrinolaringologista, explica como tratar da sua voz, e como ela, para além de única e irrepetível, pode dar origem a grandes paixões.
No início da primeira guerra mundial o famoso pintor russo Wassily Kandinsky é obrigado a sair da Alemanha onde vivia há 16 anos. Após passagem pela Suíça, e não vendo fim ao conflito, regressa à Rússia em profunda depressão. Durante todo o ano de 1915 não consegue pintar um único quadro.
No verão de 1916, tentando saber notícias da guerra, telefona a um general russo, seu amigo. Quem atende o telefone é a filha do militar, que Kandinsky nunca tinha visto, mas acha a sua voz de tal forma inspiradora, que pinta uma linda aguarela intitulada - "A uma voz desconhecida". Só em outubro de 1916, o pintor conhece Nina Andreeusky, a detentora da voz apaixonante, com quem casa e com quem vive até ao fim dos seus dias.
A voz é, provavelmente, o instrumento mais simples, mais natural e mais poderoso da comunicação humana. Como funciona este fantástico e incomparável instrumento? Somos então levados a um assunto menos romântico e mais científico, mas igualmente fascinante:
Como se produz a voz humana?
Qualquer som produzido na natureza resulta de uma vibração. Para ocorrer vibração é necessário uma estrutura vibrátil e uma fonte de energia, uma força, que a faça vibrar. Como a corda de uma guitarra que vibra quando um dedo passa por ela.
No corpo humano, o principal órgão envolvido na produção de voz é a laringe, é a nossa estrutura vibrátil. O pulmão, a fonte de energia, envia o ar expirado contra as cordas vocais encerradas, fazendo-as vibrar, como uma onda, e produzir um som - o som laríngeo. Esse som, essa energia acústica gerada na laringe, vai percorrer um longo trajeto pela faringe, cavidade oral, fossas nasais, seios perinasais; onde vai sofrendo alterações acústicas (ressonância e amplificação), levando ao aparecimento do som que conhecemos como voz humana.
Mas cada um de nós tem uma voz diferente...
Como cada um de nós tem uma anatomia diferente, a ressonância e amplificação faz-se de forma diferente e, assim, cada um de nós tem uma voz diferente, única, particular, o que nos confere um traço de individualidade. Todos já nos apercebemos disto quando reconhecemos um repórter na rádio, um amigo ao telefone ou um cantor, simplesmente pelas suas vozes.
A voz de uma criança é diferente da de um adulto. Como é que isso que acontece?
Como o nosso organismo está permanentemente em evolução - crescemos, amadurecemos e envelhecemos -, a nossa voz vai sofrendo alterações ao longo de toda a nossa vida.
Do nascimento até à adolescência a laringe muda a sua posição a nível cervical, as cartilagens laríngeas crescem e adquirem mais resistência e as cordas vocais vão adquirindo a estrutura histológica em cinco camadas características do adulto. Além disso, as vegetações adenoides e as amígdalas palatinas involuem, a faringe aumenta de diâmetro e todas as estruturas da face e do tórax vão sendo alteradas. Estas alterações são acompanhadas de alterações na vibração das cordas vocais e na frequência da voz do indivíduo.
A voz é, também, modificada pelas hormonas corporais (hipofisárias, tiroideias e pancreáticas), sobretudo as hormonas sexuais. Na puberdade, por ação da testosterona, a voz muda radicalmente no sexo masculino. Entre outras alterações, forma-se a maçã de Adão, por alteração da angulação da região anterior da cartilagem tiroideia, com uma descida da frequência fundamental em cerca de uma oitava. Estas alterações acontecem a um ritmo lento mas imprevisível, sendo responsáveis por falhas e dificuldades de controlo vocal que dificultam muito a utilização profissional da voz na adolescência.
A voz dos Castrati, muito apreciada entre os séculos XVI e XX (até 1903), resultava exatamente da tentativa de artificialmente "congelar" no tempo a voz de criança antes de esta ser modificada pela puberdade. Embora os eleitos fossem sempre jovens com vozes excecionais e sujeitos a treino muito rigoroso, a conjugação de uma laringe imatura com uma capacidade torácica e pulmonar de adulto tinha como resultado vozes de qualidade surpreendente.
No sexo feminino a voz também sofre grandes alterações na puberdade, embora não tão radicais como no sexo masculino, mas vai mudando ao longo da vida em cada ciclo menstrual, durante a gravidez e depois na menopausa.
As alterações vocais são especialmente notórias durante a fase pré-menstrual e primeiros dias da menstruação e essa era a razão por que as grandes casas de ópera europeias dispensavam as suas cantoras, sobretudo os sopranos, de cantar nos chamados "dias de graça".
Durante o envelhecimento todo o aparelho fonatório sofre de novo alterações, que se tornam particularmente significativas nos profissionais de voz. As cartilagens laríngeas ossificam, os músculos intrínsecos da laringe atrofiam, as articulações sofrem erosão e o epitélio das cordas vocais aumenta de espessura. Estas e outras alterações das vias aéreas superiores e inferiores levam a alterações vocais - presbifonia.
A minha voz não tem nada a ver com o meu corpo
Por vezes a voz não se desenvolve como devia ao longo da vida e pode causar problemas sociais complicados. Se um rapaz não fizer a muda vocal na adolescência, por exemplo, e se transformar num homem grande e forte, com uma voz fraca e fininha, pode ser muito embaraçoso. Existem formas de tratar estes casos e devolver a segurança e a autoestima a estes jovens.
E quando a voz falha?
Nos últimos anos, a forma de abordagem das doenças da voz sofreu uma alteração radical.
Uma avaliação completa da voz deve ser realizada de forma multidisciplinar, incluindo uma caracterização detalhada da anatomia das estruturas envolvidas na produção de voz, uma avaliação pormenorizada da vibração vocal por videoestroboscopia (técnica que permite a observação da vibração das cordas vocais em câmara lenta) e uma avaliação acústica da voz.
Esta avaliação deve ser realizada em centros especializados - consulta de voz.
Isto é particularmente verdade nos profissionais de voz (cantores, atores, professores, jornalistas, políticos, advogados, médicos, etc), que utilizam e necessitam da sua voz para trabalhar. Não apenas em situações de doença, mas também com a intenção de prevenção, mudança de voz ou treino da voz para profissionais.
Quais são as doenças mais frequentes da voz?
As causas mais frequentes de rouquidão resultam de abusos vocais, como gritar. Os nódulos, os pólipos e os quistos são lesões benignas que resultam de má técnica fonatória e podem ser muito incapacitantes, mas são tratáveis com terapia da fala ou cirurgia.
O tabaco é a principal causa de lesões como o edema ("inchaço") das cordas vocais, que faz a voz das mulheres fumadoras ficar "grossa" e masculina. Os tumores da laringe são raros, mas afetam sobretudo os fumadores, por isso nunca é tarde para parar de fumar.
Como se pode preservar a voz?
A voz é um bem fundamental para a nossa vida profissional, social e pessoal, mas maioria das pessoas só lhe dá o verdadeiro valor quando a perde.
Para uma boa saúde da voz é fundamental beber 1 litro e meio de água por dia e não gritar. É muito importante aquecer bem a voz antes de a utilizar, como fazemos aquecimento no início de uma aula de ginástica.
Comer maçãs, bocejar e rir são coisas simples que ajudam as cordas vocais a funcionar melhor. Evitar agressores como o tabaco e tratar o refluxo são condições fundamentais para uma boa saúde vocal.
Estou rouco. O que devo fazer?
Se está rouco há mais de duas semanas, marque uma consulta de voz. Qualquer doença das cordas vocais, benigna ou maligna, é mais fácil de tratar se for diagnosticada no início.