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Transparência é uma das palavras que está na ordem do dia.
Hoje mesmo, no Parlamento, os deputados voltam ao tema e vão alterar - ou não - decretos-leis que já existem, sem prejuízo de levarem a sério a mensagem de Marcelo, a propósito dos recentes - e alegadamente - casos de incompatibilidades de ministros deste Governo.
Estamos a viver debaixo, não da lei, mas da interpretação da lei. Uma lei que precisa de um parecer para ser interpretada é uma má lei. Má no sentido em que não é clara, inequívoca, blindada, à prova de interpretações ou, como dizem os juristas, "salvo melhor opinião".
Uma lei não deve estar sujeita a opiniões, sejam "melhores" ou menos boas. Uma lei deve ser, para começar, exequível. Ou seja, deve poder cumprir-se. Depois, deve ser clara e transparente, sobretudo se se tratar de leis que tratam... da transparência. No caso da incompatibilidade de titulares de cargos públicos há, dizia o Diário de Notícias há uma semana, 15 leis que regulam essas incompatibilidades. Pior que uma lei má, só dezena e meia de leis más e, muitas vezes, conflituantes.
Depois, e este é o meu ponto, sem prejuízo do recorte literário que os juristas e a linguagem jurídica dão aos articulados, uma lei que não é compreendida por qualquer português "normal" é, sem si, uma lei antidemocrática. A lei também diz que o desconhecimento dela não implica o seu não cumprimento. Mas desafio os leitores - os que não são juristas ou linguistas - a escolherem uma lei qualquer. E façam o favor de ler a lei, de uma ponta à outra. No final, ficarão, certamente, com a sensação de que são terrivelmente incultos, dominam mal a língua portuguesa ou, no limite, desistem ao fim de alguns parágrafos. A construção intrincada, a escolha de palavras, a introdução de conceitos jurídicos dentro dos articulados acabam por transformar o texto num quebra-cabeças. E, daí, a necessidade da clareza na escolha das palavras para que qualquer cidadão tenha o direito de compreender o que o Estado manda fazer, sem ter que pedir a um advogado ou a um linguista que traduza o que a lei quer dizer.
Depois, há a questão da interpretação.
Da dúvida jurídica, dos tais pareceres que se pedem. Os pareceres, por mais ilustres que sejam os seus autores, não passam de pareceres. E os pareceres são sempre dados "salvo melhor opinião". A prática diz-nos que pode haver dez pareceres num sentido e outros dez no sentido oposto. E todos estarão juridicamente certos e fundamentados.
E uma lei não tem de parecer. Tem de ser.
Outra discussão em que se entretém o espaço público - o que dá imenso jeito a políticos, advogados e juristas - é a diferença entre a "letra da lei" e o "espírito do legislador". Não bastas vezes, há grandes divergências de opinião - ou de parecer - sobre o que, de facto, está escrito em letra de lei e, por outro lado, se era mesmo aquele o espírito do legislador quando fez aprovar a lei.
Este tipo de dúvida jurídico-filosófica demonstra à saciedade que todas as leis são passíveis de interpretação, de uma "melhor opinião", de contraditório, da invocação da eventual discordância entre a letra e o espírito. Entre o que está, de facto, escrito, e o que se pensa que poderia ter sido aquilo que o legislado pensou quando escrevia.
Tornar as leis claras, transparentes, e acessíveis é um desafio para quem as redige e para quem as aprova. A democracia também se revela na qualidade da "legislação produzida". Portugal tem leis a mais, mas clareza a menos. Antes de falarmos da transparência, convém começar por sermos transparentes.
Isto, claro, salvo melhor opinião.
