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A religião que Marcelo Rebelo de Sousa professa obriga-o a perdoar. O perdão é uma forma de limpeza da alma, de dar a mão ao próximo, de proporcionar uma segunda oportunidade, de encarar as faltas, erros e omissões do semelhante como uma fraqueza momentânea que a concessão do perdão ajuda a ultrapassar. Na religião que Marcelo Rebelo de Sousa professa, nada está escrito sobre o esquecimento. Embora a velha frase "perdoo, mas não esqueço", nos remeta para uma espécie de perdão apenas parcial, uma vez que a causa da ofensa que mereceu perdão permanece viva, pelo menos na memória. E sabemos como é a memória, que às vezes nos atraiçoa, outras nos confunde e, não raras outras, se torna seletiva, imprecisa, nebulosa e, às vezes, traiçoeira. Sem culpa. Porque esse sentimento, o da culpa, também é uma caraterística da religião que Marcelo Rebelo de Sousa professa. Carregar a culpa, expiar a culpa, atribuir a culpa faz parte do quadro de referências e de vivências dos católicos que vivem fervorosamente a sua fé. Outras religiões, bem menos implacáveis, se assim podemos dizer, (con)vivem bem melhor com a culpa. Marcelo Rebelo de Sousa terá sempre a tendência para perdoar. Mas este católico, de que falo, não é o Presidente da República. É o cidadão.
Já o Presidente da República, não obstante o facto de ser a mesma pessoa, só tem poder constitucional para perdoar no Natal, quando o Ministério da Justiça lhe leva casos de reclusos que pedem perdão. Perdão, lá está, das penas a que estão sujeitos, depois de apurada a culpa.
Fora esta cerimónia natalícia, a constituição não prevê que o perdão possa ser aplicado à vida democrática do país. Acontece que, este fim de semana, o Presidente da República anunciou que "não perdoa" à ministra da Coesão, caso os fundos do PRR não sejam executados, depressa e bem, e sobretudo até ao último cêntimo. Disse-o cara a cara, olhos nos olhos e, tal como fez questão de sublinhar, perante "milhares de testemunhas". O Presidente da República estava a falar para todo o governo, para a ministra da Presidência e, no limite, para citar o próprio presidente, para o primeiro-ministro, uma vez que é a ele quem compete "escolher e ser o responsável pelo que fazem os membros do governo". O presidente disse esta frase a propósito da polémica, ao tempo, com Pedro Nuno Santos, quando este foi desautorizado pelo líder do governo. Talvez seja tarde para o Presidente da República anunciar que não perdoará. Tem havido, ao longo dos seus mandatos, outras, muitas outras alturas em que as ações - ou inações - do governo não deveriam ter merecido a complacência, o beneplácito e o silêncio de Belém. Ao escolher a mensageira de ocasião, o Presidente da República mandou o recado a todo o executivo. Publicamente, quer a própria quer o primeiro-ministro já vieram em socorro do... Presidente. "Está a fazer o que lhe compete", disse a ministra. António Costa atribuiu pouca importância, dizendo que o Presidente da República tem momentos de "maior criatividade". Neste caso, está em causa, não só o que disse, mas, sobretudo, a forma como o disse. O ralhete e a ameaça de "não perdoar", devem ser para levar a sério. A cara do presidente acompanhou o vigor das palavras.
Costa não o fez, não levou muito a sério o aviso, porque dá latitude à interpretação dos "poderes presidenciais". E, na leitura de Costa, que não é um católico como Marcelo, deixou claro que a "nossa constituição é bastante clara", logo, quem escolhe ou demite membros do Governo não é o Presidente. Este apenas os nomeia ou exonera, sob proposta do Primeiro-Ministro. Sabendo de tudo isto, Marcelo, o presidente, foi de uma clareza meridiana. Não vai perdoar ao governo, todo, deslizes no PRR. E há milhares de testemunhas.
