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Sentado numa laje mesmo em cima da portinhola de pagamento de um posto de combustível, Manuel, vou chamar-lhe assim, atirou-me um olhar triste de desassossego, estendeu a mão e em simultâneo abriu os olhos a custo. Pediu-me uma moeda. Talvez fosse inquilino da cordilheira de cogumelos que desenha a curva de uma rua nas traseiras. Na cidade grande, nas cidades de Portugal, o número de pessoas sem teto, muitas até com emprego, mas sem-abrigo, não pára de aumentar. E nós, tantas vezes anestesiados pelo correria diária, fechamos os olhos sem coragem de partilhar a dor.
Não se trata de culpa, mas de responsabilidade, a responsabilidade social de contribuir para a erradicação de um problema que acompanha muitas vezes o crescimento de PIB’s e outros índices cegos. Sim, é verdade, o bom comportamento dos indicadores económicos raramente se traduz numa diminuição da pobreza. Aqui, neste país, agora, nalguns setores, tão excessivamente orgulhoso por ter dado novos mundos a mundos, quase virgens, que até já existiam antes de lá chegarmos, não há raio de luz que trespasse o nevoeiro em que esta gente vive escondida.
Sofrem na noite, em silêncio, e ainda têm de encaixar o estigma dos que os acusam de viverem à custa do rendimento mínimo, como se apenas os que têm o máximo rendimento tivessem direito à dignidade. Quando se trabalha de sol e sol, ainda mais numa vida a dois, e não é possível vislumbrar forma de pagar uma renda, algo vai mal. É nesta sombra de vida, nesta angustiante sensação de desconforto e revolta, sempre em crescendo, que se erguem os grandes movimentos de contestação capazes de transformar sociedades e regimes políticos.
Imperfeita na sua perfeição, a democracia é a única via para o desenvolvimento. Mas precisa de ser cuidada para crescer neste solo quase sem nutrientes para depois, como a urze de Torga, colorir outonos como o atravessamos enquanto sociedade.