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A digitalização, a sociedade da informação, a tecnologia, a velocidade de navegação e os serviços online são, naturalmente um bem inestimável para a sociedade do século XXI. Há toda uma nova forma de comunicarmos, de nos relacionarmos, entre nós e com as mais diversas instituições com que temos de lidar no dia a dia, seja o banco online, seguros, administração pública, compras, pagamentos, encomendar comida e outros bens que nos chegam a casa, tudo através do telemóvel ou do computador.
Uma maravilha tecnológica que, supostamente, nos poupa tempo, deslocações, agiliza o quotidiano, elimina papéis, derruba barreiras e faz de nós uns felizes tecnológicos.
Tamanha facilidade e, sobretudo, acesso, tem, no entanto, um lado bastante negro e sinistro, desesperante e de uma exasperante impotência.
Muitos serviços, hoje, funcionam sem um único número de telefone para onde se possa ligar e tentar falar com alguém que nos possa ouvir e esclarecer. Nos sítios da internet das mais variadas organizações, públicas e privadas, quando temos dúvidas, aparece-nos uma lista de «perguntas frequente». Se essas não deram resposta ao nosso pedido, problema, dúvida ou questão, há sempre um chat para nos esclarecer. Ligue-se o chat.
- Bom dia, sou Anastácio e sou o seu assistente virtual.
É um robô, com nome e tudo, que nos pede palavras simples e ideias claras. Aquela inteligência, artificial, está apenas programada para dar sempre as mesmas respostas a perguntas-tipo. As tais «perguntas frequentes». Como se todos os utilizadores - já não somos pessoas, somos utilizadores - fossem estúpidos e não percebessem o básico. Mas que, em regra, não atende às nossas dúvidas. Como se trata de uma máquina com nome de gente, e que até nos responde, passado algum tempo começamos a enervar-nos com o interlocutor, porque já nos esquecemos que, do outro lado não está, na verdade, ninguém.
Um destes dias, o robô percebeu que já não tinha respostas e escreveu que ia chamar um «colega» para ajudar a resolver. O colega, humano, também não tem nome, nem rosto, embora esteja mesmo lá, vivo, e de carne e osso. A este colega do robô, já podemos escrever uns impropérios, que ele percebe, ou «desabafar». Acontece que o colega do robô, não é um, mas comporta-se como tal. Quando muito, diz que «lamenta» a situação, seja ela qual for. E, de lamento em lamento, esbarramos num muro intransponível. Até desistirmos. Sem resolver.
Esta semana, a encomenda - feita online - e já paga - online - deveria chegar entre «as 09h00 e as 13h00». Não basta que nos obriguem a ficar quatro horas à espera, naquilo a que chamam - online - janela temporal. Uma manhã inteira de nervos, a olhar para o relógio, sempre à espera da encomenda, sem poder abandonar o local, não vá a encomenda chegar e termos ido só tomar um café ali ao lado. Uma janela temporal que nos obriga a uma ginástica laboral, pedir favores a colegas para trocarem de horário, como se todos tivéssemos uma manhã - ou uma tarde - inteiras, para ficar à espera da encomenda. Duas da tarde, a encomenda não chega, três da tarde, ainda não veio, através do telefone podemos «seguir» a encomenda, está parada, não passou da fase de «recolha» para «está a caminho». E não há para onde ligar. Seja, então, o chat. Lá está o Anastácio, o robô, não consegue ajudar porque não está programado para explicar o que não tem explicação, passa ao colega humano, o colega não tem voz, só tecla, no chat, não há número fixo, diz que vai ver, é humano, vai mais além que o colega artificial, mas inteligente, anda à procura, afinal, são quase quatro da tarde, a encomenda não chegou nem vai chegar, «lamento», há atrasos nas entregas, vamos ter que reagendar, só daqui a dez (!!) dias, antes não é possível, «lamento a situação», mais um agendamento, mais uma «janela temporal» de uma manhã inteira, e que aconteceria se não tivesse ido ao chat, seriam cinco da tarde e ainda esperava pela encomenda, nem um telefonema, uma SMS, um aviso, um mail, qualquer coisa a dizer que «lamentamos» e que a encomenda não vai chegar. Então, e como se reclama online? Onde está o livro de reclamações, aquele livro físico e fora de moda, em papel, com três cópias, em que uma delas vai para a administração pública... onde está no chat o direito a reclamar, o robô não sabe, o colega humano sabe, está no lado inferior esquerdo da página online. E então, para onde vai a reclamação, fica só no site ou chegará ao destino? Isso ele já não sabe, nem por ser humano, será que vale a pena reclamar, se for só para nos responderem de volta que «lamentam» a situação, lamentar não é pedir desculpa, nem assumir a responsabilidade, é apenas uma palavra de circunstância, também eu lamento muita coisa e, depois desta camada de nervos online, sem poder falar com ninguém, lá se foram os planos, a encomenda deveria chegar hoje para poder ter tudo pronto amanhã, e agora, mais dez dias à espera, e se acontece o mesmo, e se daqui a dez dias não chega nada, e se me vão dizer outra vez que lamentam, que há atrasos, que isto e que aquilo.
O anonimato do online não responsabiliza ninguém. Ninguém, literalmente, dá a cara. Parece que estamos a falar com robôs. E estamos mesmo, sejam artificiais ou humanos transformados neles.
