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A semana que ontem terminou viu avanços interessantes nos bastidores da guerra na Ucrânia, a qual tem servido de catalisador para o estabelecimento de múltiplos acordos entre partes desavindas, promovendo assim e desta forma enviesada a paz e a estabilidade. Não acredita? Pois Israel e Líbano, oficialmente em guerra, são disso prova. A 11 de Outubro foi assinado um Acordo de Delimitação de Fronteiras Marítimas (ADFM) entre estes países vizinhos, cuja convivência antagónica em muito relembra o Portugal/Castela do "nem bom vento nem bom casamento"! Este precedente, de um acordo político com ganhos económicos entre inimigos declarados, deverá ser valorizado internacionalmente enquanto exemplo de que o "acordar em desacordar" numa escala micro, pode terminar em acordo caso a conjuntura macro assim o determine. Foi exactamente o que aconteceu entre Israel e Líbano, por via das reservas de gás "offshore" no Mediterrâneo Oriental. O imperativo em mantermos a velocidade de cruzeiro da indústria, da economia e os níveis de conforto de uma maioria que não abdica de escola, natação e um bom bife com batatas fritas para os filhos, obrigou a este entendimento entre soberanias desavindas. Ou seja, este imperativo obriga à procura de fontes alternativas ao gás russo, para que a Europa continue a ser a Europa do conforto, em que sempre vivemos e a qual nunca questionámos.
Este agora "adquirido Ocidental" no Mediterrâneo Oriental, que teve mediação americana (entre Israel e Líbano), viu praticamente em simultâneo uma movimentação russa no dia seguinte à assinatura deste ADFM (11 Out.) entre Israel e Líbano, já que no dia seguinte, a 12 de Outubro, durante o Fórum de Energia em Moscovo, Putin apresenta uma ideia/proposta em fazer da Turquia o eixo central de armazenamento e distribuição de gás russo para a Europa. Esta proposta também me parece genial, já que desta forma a Rússia coloca a sua mão musculada por cima do ombro do "inimigo-mediador", ganhando ascendente sobre este e muito provavelmente sobre a própria NATO também. Ou seja e novamente de forma enviesada, esta hipótese a materializar-se, contribuirá para a manutenção e reforço dos equilíbrios que sustentam a paz, porque garante conforto!
Ora esta proposta russa a ser aceite pela Turquia, em teoria e dependendo das nossas "artes", poderá reforçar a posição de Sines neste "Grande Jogo do gás europeu", já que uma "mãe-de-gás" destas dimensões na ponta leste da Europa, obrigará naturalmente a outra de dimensões idênticas na ponta ocidental da Europa. Não tendo o Cabo da Roca estrutura gasifica, a mais próximo encontra-se em Sines!
Marrocos assina Acordo Nuclear com a Rússia
Na senda dos temas desenvolvidos acima, a 13 de Outubro Marrocos assinou um Acordo de Cooperação com a Rússia no domínio do nuclear, no qual esta última ajudará o nosso vizinho do sul na criação e melhoria de infraestruturas de energia nuclear, estações de dessalinização de água e aceleradores de partículas elementares. A formação de quadros marroquinos também é contemplada neste acordo, bem como contributos russos para a concepção e construção de reactores nucleares e a experiência destes em saberes como os ciclos dos combustíveis, energia nuclear usada e gestão dos lixos inerentes. Por último, a prospecção de depósitos de urânio em solo marroquino terá a colaboração da Rosatom, a Estatal russa para a energia atómica. Perante isto fica a dúvida, será Marrocos uma potência nuclear ou pretenderá vir a sê-lo?
Marrocos apenas tem um Centro de Pesquisa Nuclear em Maâmora/Kenitra, não muito longe da capital, pelo que este acordo demonstra claramente uma vontade de desenvolver o sector, não de forma agressiva, mas enquanto alternativa às dependências que o seu parque industrial tem do gás natural. Desde que foi privado do gás com origem argelina, em Novembro de 2021, Marrocos procura alternativas viáveis que façam esquecer esta dependência do seu arqui-inimigo e irmão. Refiro irmão, já que o comportamento político-diplomático destes vizinhos tem-se pautado por pirraças e rasteiras mútuas, exactamente na senda dos irmãos quando chegam aos 7/8 anos, a "idade parva", como a consideramos. Curiosamente, este comportamento mútuo característico da pré "idade-da-inocência", são o garante, pelo menos para mim, de que a guerra directa entre ambos por causa da permanente disputa sahraoui, nunca acontecerá!
Por outro lado, Marrocos faz questão de jogar em todos os tabuleiros. Voltando ao da "pirraça aos argelinos", demonstra-lhes simplesmente que a Rússia não tem mais interesse na Argélia que em Marrocos e isto basta-lhes para lhes encher o ego e fazê-los gritar vitória. Já no campo da "outra política", da mais global, Marrocos faz exactamente o que Portugal fez durante a II Guerra Mundial, quando vendia volfrâmio à Alemanha de Hitler ao mesmo tempo que disponibilizava a ilha de Santa Maria à Inglaterra de Churchill, no sentido em que é o primeiro aliado dos Estados Unidos da América (EUA). Em detalhe, o Império Cherifiano de Mohammed III foi a primeira soberania a reconhecer a independência dos EUA, ainda em 1777, facto que lhe garante um voto, ou um veto, no Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas. O mesmo acontece com a França, num modelo pós-colonial, que lhe permite voz dupla no mesmo CS. Desta forma, Marrocos garante um Plano B num Mundo em crescente imprevisibilidade, já que se os dois aliados tradicionais lhe falharem, este terceiro poderá resolver, em caso de vida ou de morte!
A Acontecer/A Acompanhar
- Inscrições abertas no Centro Cultural Português de Rabat, para cursos de Língua Portuguesa, com todas as informações através do mail ccp-rabat@camoes.mne.pt
- 18 de Outubro, 18h, "l"apero portugais" no Churchill"s Club de Casablanca, encontro já tradicional a cada terceira terça-feira do mês, do empresariado português residente em Marrocos, organizado pela Câmara de Comércio, Indústria e Serviços de Portugal em Marrocos.
Raúl M. Braga Pires é autor do site Maghreb-Machrek, é Politólogo/Arabista e escreve de acordo com a antiga ortografia
