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Começo por arriscar a ira dos ouvintes da TSF defendendo o árbitro holandês do jogo de sábado entre Portugal e a Sérvia que não atribuiu, no último minuto do jogo, um golo claro a Portugal, por ter considerado, erradamente, que a bola não tinha ultrapassado a linha de baliza. A culpa do desastre não é dele, mas sim de quem o envia "para a estrada" com um velho Renault Clio depois de passar toda a época a conduzir automóveis de topo de gama, beneficiando de todo o tipo de tecnologia de assistência à condução.
Pensem no seguinte exemplo, que imagino já tenha sucedido com muitos de vós. Estamos tão habituados aos carros com sensores de estacionamento que quando usamos um carro sem essa tecnologia é bem mais provável bater ao estacionar. O nosso cérebro habitou-se a ter esse auxílio e já só funciona no pressuposto de que ele lá está. Se não ouvimos o alarme presumimos que não há risco e só nos recordamos que não o temos quando já batemos ou próximo disso.
Após centenas de jogos a arbitrar com esse auxílio, os seus cérebros estão condicionados para achar que apenas é golo se ouvirem o alarme.
O mesmo sucedeu ao árbitro holandês. A goal-line technology (tecnologia da linha de golo, que avisa os árbitros de que a bola entrou na baliza através de um alarme sonoro) é hoje comum em todas as competições na Europa. Não a usar nos poucos jogos da qualificação para o mundial não implica apenas o abdicar de um meio poderoso para garantir a verdade do resultado, tem consequências bem mais graves, resultantes dos árbitros já não estarem habituados a arbitrar sem esses meios tecnológicos. Por um lado, os árbitros deixaram de estar treinados para ajuizar esse aspeto do jogo. Mas, ainda mais relevante, é que após centenas de jogos a arbitrar com esse auxílio, os seus cérebros estão condicionados para achar que apenas é golo se ouvirem o alarme. Eu próprio fiquei inicialmente confuso porque me parecia óbvio que era golo, mas estava à espera da confirmação tecnológica. Acho, aliás, que isso também terá influenciado o falhanço na recarga do Bernardo Silva. E a reação tão emocional de Ronaldo também pode ser, parcialmente, atribuída à expectativa de certeza e segurança a que tecnologia o habituou e que, de repente, lhe foi retirada. O seu cérebro, como o nosso naqueles minutos, nem admitia o que erro que estávamos a ver como possível.
As tecnologias programam os nossos cérebros a funcionar de forma muito diferente. Não se pode achar que podemos regressar, de um momento para o outro, a um mundo sem essa tecnologia esperando que os cérebros se adaptem imediatamente.
O que é estranho é ninguém ter pensado nisto numa competição de milhares de milhões de euros. O fenómeno é conhecido e há muito estudado pelos neurocientistas. Também já vos terá acontecido tentar tocar no ecrã de um laptop depois de muito tempo a usar um tablet ou smartphone. Há casos de crianças, muito dependentes de tecnologia, que procuram fazer escorrer com os dedos a página de um livro. Os médicos dizem que são hoje muito mais comuns os casos de pessoas jovens que pensam ter Alzheimer precoce, pois a facilidade com que a tecnologia lhes disponibiliza informação lhes cria expectativas erradas sobre o que deve ser a sua memória... As tecnologias programam os nossos cérebros a funcionar de forma muito diferente. Não se pode achar que podemos regressar, de um momento para o outro, a um mundo sem essa tecnologia esperando que os cérebros se adaptem imediatamente. Acho que o mesmo se vai passar com os jogos sem VAR. O VAR habitua os árbitros a ver e decidir os lances de uma certa forma e, quando não o têm, não vão simplesmente passar a arbitrar como faziam antes do VAR.... Os árbitros vão errar mais no fora de jogo, em jogos sem VAR, do que faziam antes do VAR, pois os seus cérebros estão programados, com o VAR, para deixar a jogada prosseguir.
TSF\audio\2021\03\noticias\29\opiniao_poiares_maduro
A falta de supervisão e regulação pública adequada, num negócio que envolve tantos milhões, explicam a forte associação entre o futebol e criminalidade económica que várias entidades identificaram.
É totalmente amador, num contexto em que jogadores e árbitros estão tão habituados à goal-line technology, colocar os árbitros a arbitrar sem ela e ficar surpreendido com consequências como a de sábado. Este amadorismo é chocante, mas não surpreendente para mim. Ele é uma metáfora sobre a inconsistência entre o negócio de milhares de milhões de euros que é o futebol e o amadorismo que continua a dominar o governo das instituições que nele mandam. De acordo com um estudo, com alguns anos da Comissão Europeia, as diferentes áreas de negócio relacionadas com o futebol são responsáveis por mais de 3,5% do PIB Europeu (mais do dobro da agricultura). Incompreensivelmente, a regulação de uma parcela tão significativa do mercado europeu está nas mãos de uma entidade privada transnacional que não está sujeita a um escrutínio publico efetivo. A FIFA, e através dela a UEFA, decidem quem acede a este mercado e em que condições ele funciona. A falta de supervisão e regulação pública adequada, num negócio que envolve tantos milhões, explicam a forte associação entre o futebol e criminalidade económica que várias entidades identificaram. O amadorismo, com um impacto potencial de milhões, do jogo de sábado, é apenas mais um resultado desta cultura de governo em que a responsabilidade não existe. Um jornalista estrangeiro procurou durante o dia de ontem junto da UEFA e da FIFA saber qual das duas organizações era responsável por não existir goal-line technology nas qualificações europeias para o Mundial. Aparentemente, eles próprios estão confundidos sobre quem é responsável: da FIFA responderam que era a UEFA e da UEFA que era a FIFA. Aparentemente, é precisa uma espécie de goal-line technology para apurar a responsabilidade entre a FIFA e a UEFA. Mas, sobretudo, estamos a precisar de um VAR regulatório que imponha um mínimo de supervisão às organizações que gerem o negócio do futebol e do desporto.