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Joe Biden está a conseguir atingir, com rara rapidez, o essencial do que tinha prometido: restauração da dignidade presidencial, controlo da pandemia, recuperação económica. E até tem acenado a acordos bipartidários numa América polarizada. O problema é que a "ferida trumpista" não sara. Está mesmo para ficar. E tem feito tudo para voltar.
No Dia da Independência, o Presidente dos EUA prometeu fazer emergir a América "da escuridão" a que foi votada. Joe Biden lançou, a 4 de julho, que "o ato mais patriótico" que os norte-americanos podem fazer nesta altura é "serem vacinados".
Um olhar pelos factos mostra-nos que está a ir pelo bom caminho - mas que ainda tem uma longa e dura jornada pela frente.
A duas semanas de completar meio ano de presidência, Biden tem no sucesso da vacinação (mais de 70% dos americanos com pelo menos 27 anos já imunizados) o seu maior trunfo - apesar de ter falhado o segmento 18-26 na "data mágica" apontada pelo Presidente.
Os 850 mil novos postos de trabalho criados em junho, recorde mensal desta presidência, decorrem, em grande parte, da reabertura da economia e dos estímulos aprovados por esta administração.
Biden tem reposto dignidade a um cargo que foi muito afetado no seu prestígio nos quatro anos de Donald Trump, criou nos primeiros cinco meses mais do triplo de novos empregos dos que foram criados em igual período do arranque da presidência Trump (3 milhões vs 894 mil) e tentou estabelecer pontos bipartidárias que levem a algum tipo de normalidade democrática, depois da inominável invasão do Capitólio.
Mas há sinais contraditórios que continuam a perturbar.
Depois de ter sido eleito, há oito meses, com 51,1% dos votos, a taxa de aprovação de Joe Biden não descola desses valores.
Os esforços de vacinação não convencem todos: em abril a média diária de vacinados na América passava os três milhões, por esta altura nem um milhão atinge. A percentagem de céticos e de aderentes de teses "antivaxer", não sendo maioritária, insiste em ser significativa.
A ideia de "América fraturada" permanece.
Não nos enganemos, porém: Joe Biden é, de longe, o líder político mais bem posicionado para criar "maiorias de bom senso". Tem saldo de aprovação positivo de 12 pontos (enquanto o seu antecessor permanece nos 14 negativos). Os seus atuais 51% resultam da junção das alas esquerda e moderada do Partido Democrata com a maioria dos independentes e cerca de um quinto dos eleitores republicanos.
Só que o essencial dos 74 milhões de votos em Trump em 2020 continua a corporizar a "mancha democrática", que se recusa a aceitar os resultados eleitorais, desdenha as decisões judiciais e não se choca com o ataque ao Capitólio.
Parece estranho, mas é verdade: o "Trumpismo" continua dominante no GOP.
Vozes moderadas como a congressista Liz Cheney foram afastadas e os líderes republicanos do Congresso (McConnell e McCarthy) fingem ter-se esquecido do que passaram e do que disseram a 6 de janeiro - e voltam a uma estranha subjugação ao trumpismo.
Ora, isto é um problema sério, real - e que está para ficar.
Quando um dos dois partidos que sustentam o sistema bipartidário finge que nada de especial aconteceu na invasão do Capitólio, quando aceita entrar em "whatabouttism" colocando dúvidas em relação ao óbvio (as imagens são claríssimas a mostrar que os invasores do Capitólio eram apoiantes do ex-Presidente e o objetivo era reverter de forma ilegítima os resultados eleitorais), fica difícil pensar numa normalização democrática durável.
Donald Trump já está no terreno para 2024, explorando a ideia de que Biden é "fraco com a China" (na verdade, tem sido bem mais duro do que Trump foi), "fraco na contenção dos imigrantes" e alimentando teses negacionistas sobre as eleições e sobre a pandemia.
O ex-Presidente está ainda a jogar num outro fator que tem sido menos abordado: acredita que Joe Biden, com 82 anos, não terá condições de saúde para buscar a reeleição e sabe que as duas alternativas presidenciais dos democratas têm, cada uma delas, debilidades eleitorais para um cenário de uma eleição nacional: Kamala está a ser retratada pela ala trumpista como uma "perigosa esquerdista radical" (não é, está longe de o ser), Buttigieg pode vir a ter o trunfo do sucesso do Plano de Infraestruturas mas terá sempre o "handicap" eleitoral, numa América ainda com um peso muito conservador (mesmo em algum eleitorado democrata), de ser homossexual.
O Trumpismo está longe de ser ameaça afastada. Continua no terreno, continua dominante no Partido Republicano e está a fazer tudo para voltar à Casa Branca.
Um terço dos norte-americanos acredita na "Grande Mentira"
A Monmouth fez novembro, em janeiro, em março e em junho sondagem com a mesma pergunta: acredita que houve fraude eleitoral na vitória de Joe Biden sobre Donald Trump? A resposta em novembro do ano passado era perturbadora: 32% disseram que sim. Era muito em cima da eleição.
Mas... e em janeiro? 32% outra vez? E em março? A mesma coisa: 32% disseram que sim. E em junho? Também 32%.
Ou seja: um terço dos norte-americanos acredita na "Big Lie" e não sai dessa "realidade alternativa" em que quer acreditar.
Como é que isto é possível?
Como é que milhões de americanos continuam a embarcar numa via antidemocrática e negacionista, depois da derrota de novembro, depois das contínuas tentativas de supressão do voto, depois da invasão do Capitólio?
O jornalista Miguel Carvalho, em entrevista ao "Gerador",
avança com uma explicação mais vasta do problema,
que atinge outras latitudes: "Eu sinto que as pessoas
precisam de uma narrativa noticiosa ou ideológica
que não lhes complique a vida. [Pensam] "Eh, pá, isto agora de estar a discutir muitas ideias, e agora identidade de género, racismo, xenofobia... eh, pá, não, não. Quero uma coisa simples sobre isso, não me obriguem a pensar muito e, se me venderem bem um pacote sobre estas ideias, que eu posso acreditar nelas, maravilhoso."
Trunfos contra o "backlash"
Joe Biden tem os seus trunfos para tentar evitar este possível recuo democrático: o crescimento económico, que a Fed previa há um ano de 5% para esta altura, está entre 7,5 e os 10% para o segundo trimestre de 2021. O consumo privado cresce a 11%. O público e o investimento cerca de metade disso - mas se o Plano de Infraestruturas for aprovado também poderá disparar no próximo ano fiscal.
Há quem veja em tudo isto alguns perigos: inflação galopante, crescimento anémico para os anos pós-recuperação. Mas depois da derrocada da primeira paragem pandémica 2020 (que, em abono da verdade, em muito terá contribuído para a derrota de Trump), digamos que esses serão "bons problemas".
Quanto mais competente se revelar a Administração Biden nestes quatro anos, quanto melhores foram os resultados práticos das políticas de promoção de justiça social e equidade racial, menor será o risco de haver um "backlash" democrático em 2024.
Mesmo que esta época de polarização política e ideológica pareça tornar inevitável a extremação de posições partidárias, o triunfo eleitoral de Joe Biden em novembro de 2020 - sobrepondo-se às alas radicais do seu partido, na fase das primárias, e à plataforma demagógica e populista de Trump na eleição geral - foi a prova de que ainda é possível encontrar uma solução moderada que obtenha pontes capazes de atingir maiorias.
Os "democratas" parecem cada vez menos dispostos a aceitar a capitulação trumpista do outro lado da barricada. Os "republicanos" parecem constrangedoramente frágeis na possibilidade de resistir com moderação ao "takeover" populista que Donald Trump representou no GOP.
Mas a maioria dos americanos sinalizou em novembro de 2020 que não está tão polarizada como "democratas" ou "republicanos".
Quer, essencialmente, duas coisas: 1) boas condições para prosperar economicamente e 2) sentir-se segura perante as novas e velhas ameaças (o desemprego criado pela automação; a incapacidade do governo federal e dos poderes estaduais funcionarem de modo competente; as tensões sociais, exploradas politicamente pelas abordagens populistas, da pressão migratória e da afirmação de identidades diversas do ponto de vista étnica e de género.
Problemas que não se resolvem
Joe Biden sabe que há desafios tremendos a enfrentar nessas áreas, numa América que continua a surpreender-nos pela negativa: só no fim de semana do feriado de 4 de julho houve 150 pessoas mortas à bala em quatro centenas de tiroteios nos EUA.
Vou escrever outra vez: centena e meia de pessoas na América morreram em solo do seu próprio país, vítimas da violência de armas de fogo em dias que deveriam ser de festa e celebração.
Era suposto que esse fosse um dado suficientemente aterrador para que se encontrasse uma "maioria de bom senso" em Washington DC quanto ao acesso às armas na América.
Mas não é.
Escrevo sobre política norte-americana há quase duas décadas: já assisti, entusiasmado, à eleição do primeiro Presidente negro na América; já assisti, chocado, à eleição de alguém que não era bem um Presidente dos EUA. Tentei compreender que tanto Barack Obama como Donald Trump se integram na História diversa e contraditória daquele grande país.
Ambos (Barack e Donald) tiveram o seu tempo, fizeram o seu trabalho representando agendas e interesses tão diversos -- mas o que nunca consegui mesmo compreender foi a incapacidade das lideranças políticas em Washington de enfrentar a sério um problema que coloca os EUA com números de violência contra pessoas mais graves do que países que estão em guerra.
Associada a essa questão está um problema, que tem vindo a crescer no último ano, da violência urbana nas grandes cidades dos EUA. Atendendo à retórica securitária
Falar para a América esquecida
Para Joe Biden conseguir ter uma Presidência de sucesso precisa de ser capaz de governar não só para a maioria que o elegeu mas também para a "América esquecida" - a tal América que ficou desiludida com Obama (ou que nunca foi capaz de o aceitar) e para a qual Hillary Clinton não soube falar.
Trump chegou à Casa Branca lançando promessas que não soube cumprir a essa "América esquecida". Biden projetou um "Build Back Better" focado na renovação dos empregos nas indústrias do Midwest, na reconversão para as energias limpas, na aposta no emprego americano, numa espécie de "protecionismo versão anos 20 do século XXI".
Tem, no American Jobs Plan, uma importante ativação desta via pragmática de chegar à "América esquecida", seja pela via do apoio às comunidades rurais, com internet rápida, seja pela aposta em empregos não qualificados, nos projetos de obras públicas (ou lançadas pela administração federal com subcontratação privada).
A grande dúvida é esta: ainda será possível, pela mensagem económica pragmática, travar a ameaça identitária e populista?
A administração mais diversa da História americana
A Casa Branca apresentou relatório pormenorizado sobre a sua atividade com dados muito interessantes: tem 60% de mulheres, 56% nos cargos de responsabilidade sénior (de longe a Administração americana com mais mulheres de sempre); 36% do "senior staff" e 44% dos conselheiros nomeados por Biden são "racial ou etnicamente diversa", ou seja ou são negros, ou asiáticos ou latinos ou de outra origem que não caucasiana.
Ora, isso é o mais do dobro da diversidade que existia na Administração Trump e até cerca de um terço mais da que havia nas Administração Obama. E essa diversidade tem sido um trunfo para a agenda inclusiva de uma administração que, a duas semanas de completar meio ano de atividade, tem conquistado trunfos relevantes na promoção da justiça social e da equidade racial.
A "maioria Biden" ao detalhe
Estudo do Pew Research Center, concluído há dias, analisou a "big picture" das escolhas eleitorais de novembro passado.
A maioria presidencial Biden, para lá de assentar na já esperada coligação de negros, hispânicos e jovens, baseou-se em ganhos muitos consideráveis que o então candidato presidencial - e hoje Presidente - obteve junto de eleitores Trump em 2016, que quatro anos depois optaram por fletir para o campo democrata: eleitores suburbanos (sobretudo mulheres, mas também homens), homens brancos e eleitores independentes.
Nos suburbanos, Hillary tinha-se ficado pelos 45% em 2016, Biden atingiu 54% em 2020. Nos eleitores brancos, embora Trump tenha ganho por 51-47, isso foi bem menor do que os 54-38 com que "goleou" Hillary quatro anos antes no mesmo segmento.
Biden subiu muito nos homens (47% para 48% de Trump), enorme diferença em relação aos 11 pontos de vantagem Trump no eleitorado masculino sobre Hillary em 2016.
Já nas mulheres, Trump subiu de 39% para 44% entre 2016 e 2020, sendo que Biden teve praticamente a mesma percentagem do voto feminino que Hillary recolhera (55%-54%).
Trump até desempenhou melhor do que se esperava nas mulheres brancas e nos hispânicos (sobretudo em estados como a Florida, menos no Arizona), mas isso não chegou para segurar a vitória de 2016 e surpreendeu ao ter fortes ganhos no eleitorado latino, mas com uma importante "nuance" de habilitações literárias: entre os hispânicos sem estudos superiores obteve 41%, nos hispânicos com estudos universitários apenas 30%.
A questão educacional foi ainda mais visível nos brancos: Biden ganhou a Trump nos brancos om estudos superiores, Trump voltou a vencer nos eleitores sem escolaridade superior (42% do total dos votantes 2020), mas com Biden a obter 33% (acima dos 28% de Hillary em 2016).
Outros dados muito significativos da eleição 2020: o "turnout", mesmo em plena pandemia, subiu sete pontos percentuais em relação a 2016 e cifrou-se nos 66% -- sinalizando que polarização teve, pelo menos, o lado da dupla mobilização: o "povo Trump" foi todo às urnas, mas a "frente anti-Trump" revelou-se bem maior - e ainda mais mobilizada.
Entre os 19% dos votantes 2020 que não foram às urnas em 2016, 49% votou Biden, 47% votou Trump.
Os eleitores até aos 30 anos que não tinham votado em 2012 e 2016 deram enorme vantagem a Biden sobre Trump: 59% para 33%. Em contrapartida, os eleitores acima dos 30 anos que não foram votantes regulares até 2020 deram maioria a Trump por 55%/42%.
A "maioria Biden" precisou, por isso, de muitos eleitores Trump em 2016.
Recolocar a América em posição liderante para conter a ascensão das autocracias
A plataforma de política externa de Biden assenta em três grandes pilares: 1) contenção da China, a "potência desafiante" da "potência incumbente", que ainda são os EUA, com a Rússia a ser fixada como "ameaça com quem vale a pena fomentar relação estável e previsível", também pela necessidade de evitar o crescimento de uma "contra-aliança" entre Moscovo e Pequim; 2) regresso à aliança transatlântica (selado nas cimeiras G7, EUA/UE e NATO); 3) regresso aos grandes tratados multilaterais (com o Acordo Nuclear do Irão dependente da evolução política em Teerão e dos sinais e garantias que os iranianos pretendam dar) e fim da mais longa guerra da história americana, com a retirada total do Afeganistão.
Será esse, de resto, o maior desafio externo de Biden nas próximas semanas e meses: impedir que a retirada americana do Afeganistão se transforme, a curto prazo, num novo foco de instabilidade e ameaça na região, com os talibãs a ganhar força no terreno e com o fantasma da guerra civil a reemergir.
Apesar da "escuridão" trumpiana de 2016, e do que ela representou e ainda representa, a maior parte da sociedade americana quer regressar a uma normalidade democrática que permita entendimentos bipartidários nas questões essenciais e garanta o respeito pelas instituições democráticas.
O caminho é longo - mas está a correr bem. Muito melhor do que muitos profetizaram antes da eleição 2020.
*Autor de "Joe Biden - o Homem e as suas Circunstâncias"