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Por uma vez posso dizer bem da FIFA, mas não será muito. Hoje será a primeira vez que uma mulher irá arbitrar um jogo do Mundial de Futebol masculino. Não se trata apenas, nem sobretudo, do que isto representa no mundo do futebol. Bem mais importante é o impacto societário que pode ter, em muitos países onde as mulheres ainda são fortemente discriminadas, ver uma mulher a "dirigir" um jogo de futebol entre homens. Até há pouco tempo as mulheres não podiam sequer ir aos estádios em vários países árabes. Imaginem o impacto simbólico nesses, e noutros países, ao verem, através da TV, uma mulher a arbitrar um jogo do Mundial masculino.
É pena que tenha demorado tempo a que assim fosse, que se trate de apenas uma mulher e que o jogo escolhido seja dos menos mediáticos (e menos provável de ser visto nos países onde as mulheres ainda são mais discriminadas). Mas não deixa de ser um passo positivo. É também representativo de como bastaria à FIFA ser fiel às suas próprias regras para poder contribuir para uma sociedade melhor. Basta a FIFA não discriminar os árbitros mulheres para promover a não discriminação em todo o mundo.
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Infelizmente raramente assim é. Incluindo no que diz respeito ao papel das mulheres no futebol. As jogadoras são muito menos valorizadas e o investimento no futebol feminino é muito mais baixo. Mas, talvez ainda mais significativo, e explicando o anterior, as mulheres estão fortemente sub-representadas nos órgãos dirigentes do futebol. Ainda mais sub-representadas do que nas outras áreas da sociedade.
Na breve experiência que tive no mundo do futebol (como presidente, por poucos meses, de um comité responsável por supervisionar as reformas adotadas após os escândalos de 2015) lidei com um caso exemplar da cultura profundamente misógina dominante no futebol. Uma dessas reformas estipulava que entre os representantes que as confederações elegem para o principal órgão da FIFA pelo menos um teria que ser mulher. Mais do que uma confederação aplicou esta regra criando o que chamavam de posição feminina e determinando que todas as candidatas mulheres eram candidatas a apenas essa posição. Consequência, transformaram o "pelo menos uma mulher" em não mais que uma mulher... Uma norma destinada a promover a representação das mulheres foi transformada numa norma limitando essa representação. O caso terminou num conflito entre o meu comité e uma confederação que se recusou a mudar essa regra e manteve a discriminação das mulheres. Vieram a ser condenados pelo Tribunal Arbitral do Desporto mas sem qualquer consequência prática e com a FIFA a os apoiar.
O futebol ainda é um clube de homens. Bastaria que as mulheres não fossem discriminadas no futebol para isso ter um impacto enorme nas culturas onde o futebol é objeto de paixão e as mulheres ainda são discriminadas. O futebol não necessita de ter agenda política nem de transformar regimes. Seria suficiente que fosse fiel aos princípios que as suas regras proclamam. Ler os estatutos da FIFA, o seu código de ética ou a sua política de direitos humanos recorda os mais belos textos constitucionais de direitos. O problema é a sua aplicação.
É a contaminação entre política e futebol que conduz a um uso instrumental da política pelo futebol e vice-versa. O futebol clama neutralidade política apenas quando as consequências da política lhe são desfavoráveis. Em vez disso, bastaria ao futebol ser fiel aos seus princípios para que o seu impacto político fosse positivo, não ao serviço de uma política, mas ao serviço dos valores humanos que dizem estar no coração do próprio desporto.
Uma mulher apitar um jogo de futebol entre homens não é política. Mas o impacto político que isso terá em várias sociedades é inegável. Pena que o futebol não dê mais vezes o exemplo. Pena que este bom exemplo seja ensombrado por tantos exemplos negativos. Como aquele que a FIFA deu ao proibir as mesmas mulheres árbitros de falarem sobre os direitos das mulheres... Por um lado, a FIFA promove uma imagem de igualdade ao colocar mulheres a arbitrar um jogo. Por outro, impõe a censura a essas mulheres quanto a falarem dos direitos de outras mulheres.