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Este título deriva do Programa "Estado do Sítio" do passado sábado, cujo autor, Ricardo Alexandre, me convidou para desenvolver o tema em jeito de introdução ao jogo decisivo, já que o programa passou a escassas duas horas do apito inicial. Ouvida a entrevista, sinto que fiquei muito aquém da introdução ideal e por isso mesmo tentarei agora fazer a necessária correcção de tiro.
Marrocos, independente e soberano desde 1956, é reino/cultura/comunidade muito antes disso, sendo a presente Dinastia Alaouita a mais antiga do chamado "Mundo Árabe", desde 1666. Esta dicotomia entre um "Passado passado" que foi Império e os desafios do presente e do futuro, colocam os marroquinos actualmente face à encruzilhada entre tradição e modernidade. Aliás, o último Partido político a surgir no reino, reflecte muito bem no nome essa barganha intelectual que povoa a mente dos marroquinos. De nome, "Parti Authenticité et Modernité", espelha isso mesmo, a tradição em conflito com o moderno. Numa linha, mantém um regime monárquico do qual muito se orgulham e entendem como fiel da balança, já colocaram três satélites lá em cima e já têm TGV, entre outras modernices tecnológicas, uma miragem para o europeu Portugal, que ainda discutes bitolas ibéricas!
O marroquino tem hoje aquilo que os portugueses deixaram de ter, projecto e de projecto em projecto vão consolidando os seus mitos fundadores, que tal como os de Portugal se foram substituindo ao longo dos séculos, consolidando a nacionalidade e o sentimento de pertença à comunidade que foram construindo. Esse "projecto" marroquino que alimenta a alma dos súbditos, tanto tem a grandeza da unificação territorial de Tânger a Lagouira, como é apresentado em desafios pontuais como a conversão da indústria têxtil em tempos de pandemia, numa indústria concentrada nos produtos de consumo durante esse período e logo reconvertê-la de novo na sua função original, passada a borrasca. Conseguiram-no em menos de um mês, no ido Março de 2020 e a economia aguentou e os despedimentos foram evitados. Segundo uma portuguesa responsável por uma fábrica têxtil em Marrocos, desabafou um dia, "não percebo estas gajas pá, fartam-se de trabalhar, chegam a casa têm de cuidar dos filhos, da casa e dos maridos e andam aqui a rir-se e a trabalhar. Nunca dizem não a nada!" Este "voluntarismo provocado", vai ao encontro daquilo que Pessoa encarnado como Ricardo Reis escreveu um dia como título de poema "Põe quanto és no mínimo que fazes". É precisamente isto que todos os dias cerca de 38 milhões de marroquinos fazem, quer seja para tirar a fotocópia, enviar o mail, ou jogar para serem Campeões do Mundo de Futebol.
O futebol dá-lhes agora a visibilidade mundial da liderança do reino em múltiplos sectores, não apenas desportivo. Um dia, que se faça um filme sobre este momento, não será muito diferente do Invictus de Nelson Mandela através do actor Morgan Freeman, que percebeu que para o "Nation Building" daquele momento, uma vitória desportiva seria importante para o país. No caso marroquino, uma vitória neste Mundial não servirá para unificar um povo desavindo, antes para os projectar para o próximo projecto, a realização de um Campeonato do Mundo em Marrocos, organizado por marroquinos/as, forma encontrada para um cair de pano próximo e que marcará a sucessão de pai para filho, numa tradição que já dura desde 1666.
Força Marrocos, Aacha al Maghrib, Aacha al Malik!
A Acontecer / A Acompanhar
Decorre até ao próximo dia 14 de dezembro, a 13ª edição do FESTin-Festival de Cinema Itinerante de Língua Portuguesa, no Cinema São Jorge em Lisboa.
Raúl M. Braga Pires, Politólogo/Arabista, é autor do site www.maghreb-machrek.pt (em reparação) e escreve de acordo com a antiga ortografia.
