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Poucas coisas são tão atrativas como o voto eletrónico ou, ainda mais, o voto online. A ideia de facilitar o voto em mobilidade (em qualquer sessão de voto), permitida pelo voto eletrónico ou até pode votar em qualquer lugar, como permitiria o voto online, é imensamente atrativa. É ainda mais atrativa no caso dos emigrantes e digo-o com o conhecimento de causa de quem viveu muitos anos no estrangeiro. Sendo imensamente atrativa ela é, no entanto e infelizmente, extremamente perigosa.
Como sei que estou a defender algo de contra-intuitivo, algo que quase todos nós tendencialmente apoiaríamos, peço-vos um pouco de paciência e confiança para me ouvirem, antes de mudarem de estação ou já terem opinião formada.
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O voto assenta em dois pressupostos fundamentais: confiança e confidencialidade. O primeiro é fundamental para que o resultado eleitoral seja aceite por todos. O segundo é instrumental à liberdade do voto. O voto eletrónico e o voto online mudam de forma radical estes pressupostos.
No processo eleitoral atual a confiança assenta na verificação do escrutínio eleitoral por representantes dos diferentes candidatos (ou partidos) que escrutinam os votos. A transferência do escrutínio para um sistema eletrónico, implica transferir essa confiança para terceiros. Os candidatos (e os eleitores destes) deixam de verificar diretamente os votos para confiar essa verificação num sistema eletrónico controlado por terceiros. Isto exige, por um lado, confiança na segurança desse sistema informático. Se o sistema for eletrónico, mas sem ligação à rede a sua segurança é maior, mas limita as vantagens do sistema. Se o sistema estiver ligado à rede os riscos de segurança são significativos. A Estónia é o único país que tem voto online, que exige a ligação dos computadores à rede, e vários estudos internacionais alertam para os riscos de intrusão no sistema. Mas o problema fundamental não está sequer na segurança do sistema. Está sim no salto de confiança que ele exige. Em vez de controlarem diretamente o escrutínio os partidos e candidatos têm de confiar numa terceira entidade. Ora isto é muito complicado em países, como o nosso, onde o grau de confiança nas instituições públicas é muito baixo. Acresce que, como vemos noutros países, a crescente polarização política fomenta uma lógica de desconfiança e conspiração. Num país que nunca viu questionada a legitimidade dos resultados eleitorais em democracia esta mudança radical nos pressupostos de confiança no escrutínio eleitoral abriria uma perigosa caixa de pandora. Acho que só seria de admitir uma experiência limitada ao voto eletrónico em mobilidade (permitindo-nos votar em qualquer secção de voto mas não à distância) se condicionada ao que se designa de paper trail: haver um registo do nosso voto em papel que permitiria mais tarde controlar que os votos eletrónicos correspondem aos votos em papel.
O segundo problema diz respeito à confidencialidade que o voto eletrónico à distância (online) coloca em causa. Hoje já temos quem leve a votar às mesas eleitorais uns milhares de pessoas procurando influenciar o seu voto, mas não apenas isso exige um esforço significativo como, em última análise, não estão com eles na cabine de voto. Imaginem o que aconteceria com o voto online que ocorre através de uma senha de identificação eletrónica. Muitos passariam a ter de votar na presença de outras pessoas, em muitos casos pressionados ou mesmo coagidos por eles. Teríamos também caciques a recolher senhas eletrónicas e a votar por essas pessoas. Muitos poderiam até ser tentados a vender o seu voto, votando na presença de quem lhes pagasse ou cedendo-lhes a sua senha de voto.
Trata-se, como disse, de uma excelente ideia com enormes perigos. Propostas do PS e do PSD propõe-se avançar para sistemas destes (mais prudente a do PS e ainda mais arriscada a do PSD), começando com as eleições europeias. Tenho visto muito pouca discussão sobre o tema. Era importante que parássemos para pensar um pouco mais antes de avançar quase às cegas para algo que pode ter consequências tão dramáticas no nosso sistema democrático.