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Joe Biden tomou posse como 46.º Presidente dos EUA faz hoje um ano e meio (20 janeiro 2021/20 julho 2022) e isso significa que ainda tem quase dois terços do seu mandato presidencial para cumprir.
Num cenário normal, as dificuldades políticas que hoje atravessa teriam ainda um longo espaço para serem enfrentadas e resolvidas.
Afinal de contas, Joe Biden foi eleito com a maior votação em número absoluto da História americana (81 milhões de votos) e o Partido Democrata tem algo que já não reunia há mais de uma década - e que só conseguiu por três vezes no último meio século: controla, ao mesmo tempo, Casa Branca (presidência), Câmara dos Representantes (iniciativa legislativa) e Senado (confirmação legislativa, validação de política externa e escrutínio dos lugares de indicação presidencial).
O grande problema é que os EUA não vivem, neste momento, numa democracia de plena intensidade.
A irresponsável contestação dos resultados eleitorais por parte do anterior presidente lançou um sentimento de deslegitimação que, embora não se funde em qualquer pressuposto de verdade, manchou, infetou e perturbou o discernimento de uma fatia muito significativa do eleitorado.
O "universo Trump", que nunca foi maioritário na sociedade norte-americana (nem mesmo quando Donald Trump foi eleito Presidente em 2016), continua a representar mais de 40% do eleitorado americano - e tem como agravante ser muito vocal. Consegue condicionar os espaços mediáticos, espalha a ideia de ser dominante, faz persistir temas que, de outro modo, seriam olhados como meras notas de rodapé.
Em contraponto, os democratas mantiveram uma linha mais tradicional de fazer política: continuam a preferir esse desafio dos
tempos que correm que é o de condenar a mentira e a desinformação, promovem os candidatos que enveredam pelos valores democráticos.
Em 2020 ainda deu para que Joe Biden batesse Donald Trump: a decência sobrepôs-se ao inominável, tamanho foi o falhanço da presidência anterior.
Mas pode mesmo ter sido uma espécie de última oportunidade ao primado da Democracia na terra da Liberdade.
Uma possível (e neste momento) provável Presidência Biden falhada pode constituir a estocada final numa democracia que, bem vistas as coisas, já está quebrada.
Nos EUA de 2022, o sentimento maioritário vertido voto democrático já não consegue prevalecer por si só.
Não, não é exagero.
Vejamos: as tentativas de supressão do voto das minorias passaram, em muito pouco tempo, de tática inválida a prática devidamente legalizada pelos estados controlados pelos republicanos; a reversão do "Roe vs Wade" pôs em risco a vida de milhares de mulheres americanas, apesar do direito ao aborto ser a opinião que vigora numa maioria clara dos americanos; os democratas não conseguem aprovar grande parte da sua agenda, apesar de serem maioria nas duas câmaras do Congresso, por força de artificialismos de que os republicanos não abdicam.
A situação já é complexa, mas pode ficar bem pior se, em novembro, os democratas tiverem uma grande derrota nas "midterm". Olhando para a tendência das duas últimas décadas, o padrão é o de que nas intercalares (nos dois anos que medeiam duas eleições presidenciais) o partido do Presidente ser penalizado nas urnas.
E depois das intercalares?
O que pode acontecer se os republicanos controlarem o Congresso em janeiro de 2023? Muita coisa.
Boa parte das aprovações dos primeiros meses da presidência Biden (planos de recuperação pós-covid; estímulos fiscais aos mais desfavorecidos; apoios a estudantes, jovens mães, famílias e crianças; agenda climática) pode ser revogada ou, pelo menos, desmantelado na sua aplicação prática. As investigações a Trump e seus próximos em todo o processo de tentativa de inversão eleitoral pós novembro de 2020 e respetivas ligações à invasão do Capitólio de 6 de janeiro podem ser esvaziadas.
Enquanto o Partido Republicano não fizer o devido exorcismo dos demónios populistas, demagógicos e antidemocráticos que passaram a controlá-lo nos últimos anos, o sistema política americano, baseado em consensos alargados dos dois grandes partidos tradicionais, continuará em risco.
Como comportar milhões de americanos que acham mesmo que foi Trump quem ganhou as eleições de 2020? E que consideram legítimo o que se passou a 6 de janeiro de 2021?
Conseguimos ter mesmo a noção do que isso significa de recusa da autoridade judicial, da vontade popular legitimada pelo voto, de acolhimento no jogo democrática da participação dos negros, hispânicos (não os cubanos da Florida...) e os mais pobres?
E, depois, há a questão da guerra da Ucrânia.
Valerá de alguma coisa Biden estar a fazer o mais certo com a Ucrânia?
Pois, talvez não.
Joe Biden está a fazer o que é certo: uma ajuda incondicional à Ucrânia, na luta titânica do povo ucraniano de resistir perante a força bruta e criminosa da Rússia.
Com o apoio precioso do Secretário de Estado Blinken e do Conselheiro de Segurança Nacional Sullivan, o Presidente Biden tem liderado o regresso da América no que ela tem de melhor: liderar pelo exemplo, usar o seu (ainda) enorme poder económico, financeiro, militar, operacional na proteção dos que defendem os
valores democrático e na travagem de quem tenta, pela força e pela destruição, ditar os seus interesses mais egoístas.
Tem servido para que uma boa parte dos que, na Europa e nos EUA, ainda conseguem discernir o essencial se recordem de que sem esta "boa América" as coisas podiam ser bem piores.
Mas é impossível não sentir a inquietação: como seria se Trump ainda estivesse na Casa Branca. Dou uma sugestão: vão procurar o que se passou na Cimeira de Helsínquia, está agora a fazer precisamente quatro anos, em julho de 2018 e, sim, vão assustar-se. Foi uma vergonha que ainda hoje os meios diplomáticos recordam com um misto de pudor e receio: ver o então Presidente dos EUA rebaixar-se perante o homólogo russo, hoje promotor da maior guerra em espaço europeu em sete décadas. Trump, nesse dia, demarcou-se da posição oficial da sua própria administração e da informação dos seus serviços oficiais e avalizou a posição de Putin sobre a questão da interferência russa nas eleições americanas.
E se Trump voltar à Casa Branca em janeiro de 2025? Será que Putin está à espera disso para passar a ter uma passadeira que o leve a concretizar a destruição do que restar da Ucrânia?
O eleitorado americano costuma votar com a carteira e olhando para questões de natureza interna.
É essa a maior tragédia da presidência Biden: estar a fazer o que é certo na Ucrânia - mas isso, provavelmente, pouco ou nada vir a servir-lhe em novembro de 2024.
O aborto e a "maioria Trump" no Supremo
Sondagem da CBS News/YouGov aponta: maioria de 59% dos adultos norte-americanos desaprova a decisão do Supremo de derrubar Roe v. Wade, com 41% aprovando. Pouco mais de metade (52%) considera a decisão um retrocesso para os Estados Unidos, com 31% chamando-a de avanço e 17% dizendo que não é nenhum dos dois.
Entre as mulheres, dois terços (67%) desaprovam a decisão, com apenas 33% aprovando. Uma maioria de 56% das mulheres diz que a decisão piorará a vida da maioria das mulheres americanas.
Uma maioria de 58% dos americanos diz que seria a favor de uma lei federal que tornasse o aborto legal em todo o país, enquanto 42% se oporiam a isso. E 64% dizem que gostariam que o aborto no seu estado fosse legal na maioria ou em todos os casos.
A maioria dos americanos agora diz acreditar que é pelo menos um pouco provável que o Supremo acabe ou limite o casamento entre pessoas do mesmo sexo (57%) e o acesso ao controlo de natalidade e à contraceção (55%). Apenas 33% dizem ter muita ou bastante confiança no Supremo, com 23% dizendo ter apenas alguma confiança e 44% que têm muito pouca confiança no Supremo.
O Departamento de Saúde da Administração Biden disse aos hospitais que são obrigados a oferecer acesso ao aborto se a grávida correr risco de vida, citando as orientações federais de tratamento em caso de urgência. O Departamento emitiu um aviso aos hospitais clarificando que não podem negar cuidados a grávidas em risco ou em situação de emergência devido a aborto espontâneo. A medida decorre da ordem executiva assinada por Joe Biden, destinada a mitigar os efeitos da revogação do direito ao aborto pelo Supremo Tribunal.
Foi o máximo que Biden conseguiu fazer, dentro das suas competências para minimizar o mal já feito.
Só que a caixa de Pandora está aberta: enquanto permanecer a maioria conservadora no Supremo, o risco existe quanto a uma possível reversão em temas como casamento homossexual ou até acesso a contracetivos.
Sim: a democracia americana está quebrada.
Um país de arma na mão
Outra tragédia americana é a questão das armas. Depois de Uvalde, democratas e Republicanos anunciaram acordo para regulamentar acesso a armas, naquela que foi a maior aprovação bipartidária sobre o tema em 29 anos.
Mas que, ainda assim soube a pouco: criação de uma estrutura bipartidária em resposta aos tiroteios em massa do mês passado, um pequeno avanço que prevê restrições no acesso a armas e
reforça esforços para melhorar a segurança escolar e os programas de saúde mental; a proposta fica muito aquém das medidas mais duras defendidas pelo Presidente Joe Biden e muitos senadores Democratas.
O compromisso alcançado tornaria os registos juvenis de compradores de armas com menos de 21 anos disponíveis quando fossem submetidos a verificações de antecedentes (os suspeitos que mataram dez pessoas num supermercado em Buffalo e 19 alunos e dois professores numa escola primária em Uvalde tinham 18 anos e muitos dos agressores que cometeram tiroteios em massa nos últimos anos eram jovens). O acordo prevê incentivos financeiros aos estados para aplicarem as chamadas leis de "bandeira vermelha" que facilitem temporariamente a retirada de armas a pessoas consideradas potencialmente violentas e para reforçar a segurança escolar e os programas de saúde mental.
Outras medidas incluem exigir que mais pessoas que vendem armas obtenham licenças de revendedores federais, o que significa que teriam que realizar verificações de antecedentes dos compradores.
Ora, essa é outra contradição desta Presidência Biden: está a ganhar a fama de "não fazer nada e não conseguir nada", embora a realidade o desminta - com Biden foram aprovados os maiores apoios sociais desde Lyndon Johnson, os maiores avanços no controlo de armas desde Bill Clinton e os maiores apoios de guerra contra um agressor externo desde Franklin Roosevelt.
O que pode acontecer em 2024?
As perspetivas para a corrida presidencial 2024 mostram um cenário, no mínimo, improvável: o Presidente em funções é visto por perto de metade dos eleitores do seu próprio partido (e por 94% dos eleitores democratas entre 18 e 29 anos!) como "demasiado velho" para se candidatar para segundo mandato, sendo, por isso, "preferível nomear outro pretendente mais novo" (sondagem NYT/Siena College); do lado republicano, Donald Trump, mesmo tendo falhado a reeleição em 2020 (algo que era inédito num Presidente americano no século XXI) mantém um forte controlo do Partido Republicano e da sua base, mas a grande maioria do
eleitorado americano considera indesejável o seu regresso em 2024.
Em mais uma de várias contradições que caracterizam a política americana, Biden e Trump surgem como hipóteses indesejadas, mas talvez acabem por vir a protagonizar novo duelo presidencial em 2024.
Seria um duelo com detalhes quase bizarros: Biden terá 82 anos em 2024; Trump, um ex-presidente quase octogenário por essa altura, alvo de dois "impeachment", investigado por eventuais ligações a uma insurreição ao Capitólio e derrotado nas urnas, incluindo em estados onde os republicanos não perdiam há décadas.
Mas pode mesmo voltar a acontecer.
Do lado democrata, Kamala Harris seria a alternativa óbvia a Biden - mas a sua afirmação como vice-presidente tarda em chegar. Outros nomes como Gavin Newsom (54 anos, governador da Califórnia, marcou pontos no combate à pandemia e resistiu com 70% de apoio popular a um desafio republicano), Pete Buttigieg (40 anos, Secretário dos Transportes, responsável pela renovação da América e tido como elemento maior potencial político da Administração Biden) ou Ro Khanna (45 anos, congressista da Califórnia, preferido da ala esquerdista, herdeira do movimento Sanders, subsecretário do Comércio no primeiro mandato presidencial de Obama) revelam grandes qualidades e têm uma idade que lhes dá perspetivas de futuro - mas talvez não consigam ter tempo para adquirir uma dimensão nacional suficiente para serem candidatos presidenciais já daqui a dois anos.
O campo republicano é diferente.
Na verdade, havia alternativas com preparação e capacidade de serem nomeados presidenciais já em 2024: Nikki Haley, 50 anos, ex-governadora da Carolina do Sul e embaixadora dos EUA na ONU na primeira metade da presidência Trump, poderia juntar partes do "trumpismo" com o grosso do conservadorismo clássico; Mike Pence, vice-presidente dos EUA entre 2017 e 2021, ex-governador do Indiana, teve atitude digna e corajosa quando, a 6 de janeiro, resistiu às ordens infames do seu chefe e se recusou a tentar reverter ilegalmente o que o povo americano ditou nas urnas. Se o Partido Republicano mantivesse fortes pilares democráticos e estivesse saudável, Haley ou Pence eram ótimas formas de seguir em frente, mesmo para quem votou em Trump em 2016 e 2020.
O problema é que o Partido Republicano caiu, nos últimos anos, num poço difícil de escapar: está infetado pelos vírus da desinformação e do negacionismo (eleitoral, científico, sanitário) e por uma tendência autoritária e iliberal, que os leva por caminhos supostamente "identitários", que mais não fazem do que estigmatizar minorias em ascensão.
Só se vê uma figura capaz de roubar a terceira nomeação presidencial republicana seguida a Donald Trump: é Ron de Santis, 43 anos, governador da Florida, o único estado onde o Partido Republicano desempenhou melhor do que o esperado em 2020 e onde consegue dominar nas minorias. Falta saber se De Santis vai mesmo tentar desafiar Trump, disputando-lhe um eleitorado que, em vários aspetos, é idêntico ou se acabará por aceitar ser o "vice" de Trump e preparar, com mais tempo, a eleição presidencial de 2028 (ano em que De Santis, então com 48 anos e já sem Trump no caminho, pode surgir como favorito).
Donald Trump quer a vingança - e está a prepará-la desde que perdeu a eleição de 2020. Os atuais 33% de aprovação de Biden colocam o cenário de reeleição muito difícil. Mas se há coisa que tem sido consistente nestes anos de perturbação americana é a maioria política e sociológica nos EUA de rejeição a Trump e àquilo que ele representa.
Isso até pode resolver as atuais reservas dos democratas com Biden - sondagem NYT/Sienna College aponta que 92% dos democratas, numa disputa Biden vs Trump em 2024, voltariam a votar no atual Presidente. A última grande oportunidade para Joe Biden sonhar com um segundo mandato presidencial é mesmo ter Donald Trump de novo como adversário.
Desde que todos os votos contem mesmo.
*autor de cinco livros sobre Presidentes dos EUA; co-autor do podcast "Radar USA"