"Há décadas que Portugal se surpreende com o desencontro de pontos de vista sobre a sua relevância no Brasil, aguçado pela disparidade entre o clima tropical da mensagem oficial brasileira e a temperatura ártica após as cimeiras bilaterais. Mas os próximos meses oferecem uma oportunidade para Portugal tentar alterar este cenário."
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Em junho de 2017 o ministro das Relações Exteriores do Brasil Aloysio Nunes apresentou, na Câmara dos Deputados, as prioridades da política externa brasileira. Falou da Venezuela, do Mercosul, da América Latina, da Aliança do Pacifico, da OCDE, de Direitos Humanos. Mas não mencionou Portugal nem a lusofonia. Há décadas que Portugal se surpreende com o desencontro de pontos de vista sobre a sua relevância no Brasil, aguçado pela disparidade entre o clima tropical da mensagem oficial brasileira e a temperatura ártica após as cimeiras bilaterais. Mas os próximos meses oferecem uma oportunidade para Portugal tentar alterar este cenário. Se no início do ano tivemos um alinhamento planetário entre Saturno, Marte e Júpiter, poderemos ter em breve outro alinhamento entre os dois maiores planetas da lusofonia. Seria o resultado de um conjunto de fatores internos e externos.
Em primeiro lugar, o aumento da taxa de juros dos EUA, a queda no valor das commodities e a instabilidade política na América Latina deverão levar a uma fuga de capitais do Brasil. Investidores terão menos apetite para comprar títulos públicos brasileiros, por exemplo. Com menos competição por ativos, Portugal poderá aproveitar para ganhar exposição financeira no Brasil. E poderá fazê-lo em alinhamento com a China. O país asiático, com uma política de investimentos de muito longo prazo e imunizado contra crises imediatistas, tem mirado o Brasil com olhos arregalados. No início, o alvo foram as commodities e as áreas de energia e mineração. Mais recentemente a carteira passou a incluir o sector de serviços e infraestrutura. Entre 2003 a 2017 a China investiu 54 mil milhões de dólares no Brasil e este ano deverá tornar-se o maior investidor estrangeiro no país. Portugal pode ser um passageiro nesta viagem. Nos últimos anos a China comprou vários ativos estratégicos em Portugal também como base de treino para investimentos maiores na América Latina. As sinergias que se criaram poderão agora ser aproveitadas por Portugal.
Outro tema que deverá gerar oportunidades é a Venezuela. O Brasil está no meio de um redemoinho que simultaneamente o suga e repele do país. Ainda que a sua vontade seja manter-se o mais afastado da trincheira, a Venezuela tem acabado por dominar as relações UE-América Latina e EUA-América Latina. As relações difíceis entre os presidentes Temer e Maduro também têm inibido uma discussão séria sobre os cerca de 60,000 venezuelanos que galgaram as fronteiras nos últimos meses para procurarem refúgio no norte do Brasil. O país olha para a Venezuela como uma patriarca combalido que é obrigado a também cuidar da doença de um filho rebelde. Portugal pode ser um ponto de apoio. O nosso país tem um bom diálogo com a Venezuela, um bom conhecimento técnico das crises dos dois países e legitimidade para mediar interesses de países terceiros.
Além disso, os próximos tempos poderão ser marcados por uma guerra comercial entre os EUA e a China, com retaliações de parte a parte, e que deverá levar ao forjar de novas parcerias comerciais. O Brasil, o maior produtor mundial de laranja, café, soja e açúcar, será forçado a procurar mercados alternativos para alguns destes produtos. O maior deverá ser a China, mas a União Europeia deverá também acolher alguns dos fluxos anteriormente destinados aos EUA. É uma oportunidade para Portugal se posicionar como uma ponte atlântica.
A imagem de Portugal também passa por uma fase positiva. Uma nova classe média e alta brasileira ganhou nos últimos anos um interesse pelo país, seja para morar, fazer turismo ou investir. Lisboa substituiu Miami. Isso não reflete necessariamente uma curiosidade profunda. Muitos brasileiros que vivem em Portugal continuam a desconhecer os políticos que os governam, a economia que os beneficia, a sociedade que os acolhe ou a história comum que os molda. Mas apesar destas dificuldades de comunicação, nunca se falou tanto de Portugal no Brasil (e em muitos outros países) quanto agora. A cobertura jornalística da imprensa brasileira ainda é excessivamente focada em programas turísticos e roteiros gastronómicos, mas é uma oportunidade que deve ser devidamente explorada politicamente.
O timing atual também é vantajoso porque em Outubro decorrerão eleições presidenciais no Brasil que fornecerão uma nova cepa de líderes políticos (ou velhos políticos em novos lugares). Portugal deveria, desde já, manter relações próximas com os principais candidatos a presidente. Nenhum deles tem uma ligação cultural forte com o país (como tinha Fernando Henrique Cardoso) ou política (como tinha Lula). Se nada for feito, teremos novas Dilmas Rousseffs, que usava Portugal apenas como um local para abastecer de combustível e de críticas o avião presidencial.
Portugal deverá aproveitar o contexto favorável também para escolher novas áreas de cooperação, com forte impacto social e onde é líder mundial, sem se imiscuir na soberania do país. Uma dessas áreas é a modernização administrativa e governo digital. Os brasileiros são vítimas de uma burocracia sufocante que interdita negócios e relações sociais. Fazer uma transferência bancária internacional é um exercício tão intrépido que mereceria ser registado por um Pêro Vaz de Caminha. O pior é que os brasileiros, na ligeireza das conversas de rua, continuam a apontar Portugal como o responsável histórico pela vitória dos cartórios contra a dignidade humana. Um simples Memorando de Entendimento entre o Ministério da Presidência e da Modernização Administrativa de Portugal e o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão do Brasil não significaria muito. Mais eficaz seria Portugal e o Brasil lançarem um programa de reforma administrativa de longo prazo, verdadeiramente ambicioso, mediático, com metas estruturantes e recursos palpáveis. Em troca, Portugal poderia ter acesso a algumas conquistas brasileiras como, por exemplo, o sistema de votação electrónica, em vigor desde 1996 (o Brasil é dos poucos países do mundo que têm um sistema de voto 100% electrónico).
Tradicionalmente, Portugal opta por olhar para o Brasil pelos binóculos da lusofonia e da CPLP, concentra os seus negócios em produtos como azeite e bacalhau (os dois produtos mais exportados há décadas) e as largas dezenas de governantes portugueses que visitam anualmente o país em missões oficiais geralmente não conseguem dar seguimento eficaz às discussões que mantiveram com contrapartes brasileiras. São muitas frases sem ponto final. Este é momento para adotarmos uma postura diferente. Os próximos meses servirão de teste à criatividade e eficácia da nossa política externa.
* Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e California-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial.
(O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)