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A vitória de Joe Biden no Arizona foi o espelho mais fiel do que representou esta eleição presidencial americana.
Se Donald Trump não tivesse tratado de forma tão miserável o falecido senador John McCain, um herói americano que foi, nos primeiros dois anos desta administração, dos poucos republicanos de relevo a ter coragem para fazer frente ao Presidente que desrespeita as instituições, talvez aquele estado do Sudoeste não tivesse fletido dos republicanos para os democratas pela primeira vez em 24 anos.
Na Geórgia, o "turnout" histórico dos negros (três vezes acima de 2016) proporcionou a Joe Biden a primeira vitória de um democrata numa eleição presidencial em 28 anos.
O "novo Sul" selou a mudança presidencial, mas a derrota de Trump começou exatamente no sítio onde se tinha concretizado a vitória inesperada de 2016: na Cintura da Ferrugem.
O Michigan, o Wisconsin e a Pensilvânia travaram segundo mandato de alguém que em vários momentos nesta pandemia desrespeitou a memória dos 230 mil americanos que morreram de COVID-19 e respetivas famílias.
Para as mulheres brancas suburbanas da "Rust Belt", que há quatro anos acharam que Trump contribuiria para que tivessem uma vida mais segura e decente do que Hillary poderia fazer, o comportamento irresponsável de Donald Trump passou linhas vermelhas fundamentais.
Saber perder é tão importante como ser capaz de ganhar
O comportamento de Trump nos últimos dias é, literalmente, o de um "loser". De um falhado que não é capaz de lidar com um fracasso e tentar aprender com ele.
Não aceitar a derrota e lançar lama para um processo eleitoral que culminou com um resultado claríssimo comprova que a "cultura Trump" se funda no desrespeito pelas regras básicas da democracia, da civilidade, da capacidade de saber ganhar mas também de saber perder.
E é também, já agora, um insulto aos milhares de cidadãos americanos que, nos últimos dias, tiraram horas aos empregos, à família e às horas de sono para que a contagem dos votos se fizesse de forma limpa e clara - em nome da extraordinária democracia americana.
Ao insistir na "fraude" e no "roubo", apesar da diferença tão clara no resultado, Donald Trump bate ainda mais no fundo. Incrível o silêncio de quase todo o Partido Republicano em torno disto. Que vergonha.
O que possa ter havido de positivo nestes quatro anos da Administração Trump (houve muito pouco, mas houve) foi por água abaixo com este comportamento inacreditável.
Trump prefere segurar a sua base na ilusão de "roubo eleitoral" feito "por eles do sistema", ainda que isso não tenha ponta de ligação com a realidade, e mostra que não tem a mínima preocupação com a preservação do sentido de Estado e da saúde da democracia americana.
Faz mal.
A derrota de Donald Trump foi a vitória da decência.
Tempo de virar a página
Uma clara maioria do eleitorado americano sinalizou nas urnas uma grande saturação em relação a Donald Trump. O tempo nos Estados Unidos é de virar a página.
Mas vai ser difícil.
A passagem de Trump para Biden tem tudo para ser estranhamente complicada, por culpa do comportamento irresponsável e de muito mau perder do ainda Presidente dos EUA e candidato derrotado.
Teme-se o pior na transição -- bem pior que a partida divertida que os assessores de Bill Clinton fizeram à equipa de George W. Bush, na transição de janeiro de 2001: tiraram as teclas W dos teclados...
O futuro Presidente e a futura vice-presidente dos Estados Unidos vieram ambos do Senado. São democratas moderados, Kamala um pouco mais à esquerda que Joe, mas ambos com credenciais que garantem que voltará a haver adultos na sala na Casa Branca, depois de quatro anos de degradação institucional por culpa de alguém que, até ao fim, não foi bem um Presidente dos EUA.
Em seis mandatos no Senado, Joe Biden fez muitos amigos republicanos e foi capaz de construir consensos bipartidários. Eram outros tempos. Chega à Casa Branca com uma política americana fraturada e as bancadas partidárias sem capacidade de dialogar. Parece missão impossível, mas a via Biden será a de regressar à possível normalidade: pôr água na fervura e baixar o tom da discussão, que nos anos Trump pareceu quase sempre berraria.
Quase uma década depois de Joe Biden, como vice-presidente, ainda ter conseguido negociar, nos bastidores, com a então maioria republicana no Congresso, o futuro Presidente vai deparar-se com um sistema bipartidário moribundo, sem funcionar, e que se parece cada vez mais com um duplo "hiperpartidarismo", em que cada lado se fechou na sua trincheira e recusa ceder seja o que for ao adversário.
O que será do Partido Republicano sem Trump?
Trump foi corrido da Casa Branca não pela via progressista e radical (Bernie Sanders ou Elizabeth Warren) mas pelo centrismo moderado e institucional de Joe Biden. Ora, isso dificulta uma resposta ao centro por parte da oposição republicana.
O mais provável é que prevaleça a via trumpista populista de "identidade" e anti-multilateralismo. Trump tentou, nestes quatro anos, assumir-se líder de uma revolução populista que passava por cima das instituições. A vitória de Biden é o regresso à escolha devida da representação democrática.
Donald Trump chegou à Casa Branca sem ter feito uma carreira política. Atingiu a Presidência pela via mediática e por ter criado "uma marca". Agora que perdeu, a tese da fraude já não tem a ver com a disputa da eleição -- ele sabe que não tem hipótese de reverter. Tem a ver com perpetuar a marca. 'The show must go on'.
Primeiro Presidente neste século a falhar a reeleição, Donald Trump é também o primeiro em quase três décadas, desde que George Bush pai perdeu para Bill Clinton em 1992, a falhar segundo mandato.
Com Joe Biden na Casa Branca, o conhecimento e a ciência voltam a ser pontos fortes e não obstáculos. Não é coisa pouca.
Há sinais que o Presidente-eleito Joe Biden pode dar já: recolocar a América no Acordo de Paris, mostrar que os EUA voltam a ser confiáveis. O tal regresso à decência.
Com Trump derrotado e a caminho de deixar o poder, quantos senadores republicanos estarão agora arrependidos de terem capitulado de forma tão evidente em momentos como Charlotesville ou o "impeachment"?
Depois de quatro anos de capitulação a Trump, o Partido Republicano terá agora que fazer um caminho arriscado: vai surfar a onda dos 71 milhões de votos no Presidente derrotado ou tenta um último regresso a uma certa moderação?
A demora numa demarcação clara do disparate da "fraude eleitoral" não é um bom sinal.
Esboço da futura Administração Biden
Joe Biden vai aproveitar a grande competência técnica e experiência política de membros das duas administrações Obama, das quais foi número dois.
O 46.º Presidente dos EUA tentará incluir gente da ala esquerda. Mas também republicanos e/ou independentes da área moderada. Tal como foi a sua plataforma eleitoral, o seu governo será uma "grande tenda".
Joe é o exemplo do "homem e as suas circunstâncias": nas duas primeiras vezes que tentou a nomeação presidencial democrata (1988 e 2008) esteve longe de ter, sequer, hipóteses de ser o candidato escolhido pelo seu partido.
À terceira partiu muito atrás, teve péssimos resultados no Iowa e no New Hampshire, mas os negros na Carolina do Sul deram-lhe vitória esmagadora a lançaram-no para a nomeação.
No duelo para a eleição geral, a economia parecia garantir a reeleição a Trump antes da COVID-19. Mas a gestão desastrosa e pouco empática com o sofrimento dos amricanos comprometeu Donald Trump e deu uma grande oportunidade a Joe Biden.
Joe soube perceber o que estava em causa. Fez campanha modesta, focada, afastando pressões da esquerda e voltando um "back to basics": decência, competência, respeito pelas instituições.
Foi suficiente para ter a melhor votação de sempre de um candidato presidencial na América.
O Joe terra a terra bateu o populista egocêntrico com devaneios autocráticos. Vale a pena refletir sobre isto.
Nem sempre os "bullies" levam a melhor pelo medo.
Decisões Biden ao "Dia 1"
Ao Dia 1 da futura Administração (20 janeiro 2021), Joe Biden vai assinar três ordens executivas muito significativas: regresso da América ao Acordo de Paris, revogação da ordem Trump de reverter o DACA (direito de cidadania aos filhos de imigrantes ilegais que tenham nascido em solo americano) e regresso dos EUA à OMS.
Nos últimos quatro anos, foi quase tudo sobre Donald Trump. Biden aposta numa "normalização" do exercício da presidência. Trump ainda teve na fase inicial nomes como Mattis, McMaster e Tillerson.
Mas acabou praticamente sozinho. A chave para a próxima administração é voltar a ter capacidade técnica acima de qualquer suspeita.
Donald Trump abriu a caixa de Pandora e soltou os piores demónios que já existiam em parte da sociedade americana. O desafio de Joe Biden será voltar a puxar pelo melhor da América.
Não está em causa a tomada de posse de Joe Biden como 46.º Presidente dos EUA a 20 de janeiro de 2021. Mas nos próximos 70 dias o risco de Trump causar danos sérios ao sistema é real. Na verdade, isso já está a acontecer.
306-232 não é uma "eleição renhida". É uma diferença clara.
Demorou a ser totalmente apurada, mas é uma diferença bem expressiva, até.
No voto popular, já agora, Joe Biden acaba de passar os 78 milhões de votos. A diferença é já de quase de 5,35 milhões de votos -- o dobro da que Hillary teve em 2016, mais do que Obama teve sobre Romney na reeleição em 2012 (embora Obama tenha ganho o Colégio Eleitoral por ainda mais: 332).
Pela sétima vez nas últimas oito eleições presidenciais, o candidato democrata tem mais votos que o republicano. Pela quinta vez nessas oito os democratas ganham o Colégio Eleitoral. Biden foi o primeiro nomeado presidencial democrata em 28 anos a ganhar na Geórgia. E o primeiro em 24 a ganhar no Arizona.
A rota Biden para os 306 fez-se com a recuperação dos três estados "Rust Belt" que Trump havia ganho a Hillary em 2016 e, tal como apontámos na Emissão Especial da SIC Notícias de há uma semana, com a conquista do "novo Sul": Arizona e Geórgia.
Diário da negação
Em toda a sua vida, Donald Trump, perante uma derrota, declarou uma grande vitória. E fê-lo sempre de uma forma tão convicta que muita gente, numa espécie de "síndrome de Estocolmo", acabou por acreditar. O perfil egocêntrico de Trump fá-lo recusar a derrota.
Nunca o fará.
As palavras de Mike Pompeo ("vai haver transição suave para segunda Administração Trump") são degradantes para a reputação do Departamento de Estado - que tinha até esta presidência indecorosa o princípio de não se meter na política interna e com isso beneficiar de consenso bipartidário.
Que tristeza.
A melhor forma de fazermos uma avaliação final sobre o caráter do ainda Presidente dos EUA não é ler o New York Times ou ver a CNN: nesses dois casos até podíamos pensar que se tratava de "bias" anti-trumpiano (não acho que seja, mas, sim, muita gente bem intencionada acha isso).
É mesmo ler o que o general Jim Mattis ou ou John Bolton - seus antigos Secretário da Defesa e Conselheiro de Segurança Nacional -- escreveram sobre ele.
Os EUA são uma extraordinária democracia que em 2016, de forma livre e soberana, decidiu eleger um Presidente que ataca a democracia.
Decisões têm consequências. Estamos no momento de transição em que esse corpo estranho terá que sair.
Será um processo doloroso e demorado. Mas será feito.
Já está a acontecer - e é um caminho irreversível.
*Autor de quatro livros sobre presidências americanas