O estado da comunicação social e a relação da comunicação social com o Estado. A opinião da presidente da direção do Sindicato dos Jornalistas.
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"Até que ponto o Estado não tem a obrigação de intervir [na comunicação social]?" - a pergunta do Presidente da República incomodou alguns e agradou a outros dos presentes na cerimónia de entrega dos Prémios Gazeta, a 27 de novembro.
Marcelo Rebelo de Sousa confessou que, no passado, rejeitou liminarmente essa hipótese. Mas isso foi antes de se verificar uma "situação de emergência" nos meios de comunicação social portugueses, que se afigura "um problema democrático e de regime".
O Presidente não concretizou muito sobre o tema, mas deixou no ar a hipótese de uma "intervenção transversal, a nível parlamentar, que correspondesse a um acordo de regime" e de um contributo para "encontrar decisões ou medidas que minimizem este tipo de crise".
Marcelo Rebelo de Sousa chegou mesmo a mencionar o porte pago, único apoio direto do Estado aos jornais e às rádios exclusivamente regionais ou locais (com orçamentos que têm vindo a diminuir em milhões de euros), e a necessidade de pressionar as plataformas multinacionais que utilizam conteúdos produzidos por meios de comunicação social sem pagarem por isso.
O papel do Estado na comunicação social tem sido um tema tabu em Portugal, em parte justificado por uma ditadura recente que controlava a informação e abafava, por vezes com recurso à tortura e à prisão, a liberdade de imprensa e de expressão.
Porém, passaram-se mais de 40 anos, durante os quais a democracia amadureceu em Portugal, que atravessa agora uma "crise profunda da comunicação social".
A verdade é que o setor nunca esteve tão frágil e tempos excecionais exigem medidas excecionais. O contexto, nomeadamente o europeu, também não deve ser ignorado.
Os apoios do Estado são uma banalidade nos países nórdicos, onde não se conhecem restrições à independência da comunicação social.
Na Bélgica francófona, a ajuda pública à imprensa aumentou neste ano - seis diários receberam dez milhões de euros.
Em França, o Estado financia diretamente 700 meios de comunicação com 156 milhões por ano. Porém, segundo as contas do site Mediapart, as ajudas públicas têm favorecido os grupos de comunicação privados mais ricos, revelando desigualdade na distribuição de apoio e prejuízo para as publicações online.
Ora, para que a imprensa não fique refém de "um capitalismo opaco, que vive em consanguinidade com o Estado", como descreve o observatório dos média francês (Acrimed), há que adotar, independentemente do modelo escolhido, critérios rigorosos e transparentes.
Na Suíça, o debate prossegue aceso, desde que, em março de 2017, a maior organização de jornalistas, a Impressum, exigiu a isenção das taxas de assinaturas pagas e apelou às autoridades para que criassem um modelo de subsídios à imprensa semelhante ao escandinavo.
O Sindicato dos Jornalistas não tem ainda uma posição fechada sobre este assunto, mas considera urgente que o debate se faça o quanto antes.
Há muitas formas de apoio, que não passam, necessariamente, por um financiamento direto ao setor. Eis algumas hipóteses, lançadas aqui para debate e não enquanto propostas definitivas:
a) menos impostos e mais incentivos ou benefícios fiscais para as empresas de comunicação;
b) oferta de subscrições pagas aos cidadãos (em França, desde 2009 que o Estado oferece aos jovens entre os 18 e os 24 anos, gratuitamente, a possibilidade de terem uma subscrição paga, num jornal à escolha);
c) compra de jornais e assinaturas digitais para todas as instituições públicas, nomeadamente escolas;
d) criação de bolsas que, à semelhança das recentemente anunciadas pela Fundação Calouste Gulbenkian, capacitam diretamente os e as jornalistas e não as administrações das empresas onde eles e elas trabalham, que poderiam, em hipótese, ter a tentação de desviar os fundos para outras rubricas;
e) investimento em programas de literacia mediática (neste caso, o Estado português vai fazê-lo, já a partir do próximo ano, através de uma parceria entre os Ministérios da Educação e da Cultura e o Sindicato dos Jornalistas e o Cenjor para um programa de formação de uma centena de professores de todo o Continente.
O jornalismo é um bem público, independentemente de ser prestado por públicos ou por privados.
A existência de uma imprensa livre e independente é a essência da democracia. E, portanto, as políticas públicas para os média têm de partir do pressuposto de que o jornalismo desempenha uma relevante função social de escrutínio, vigilância e garantia de pluralismo e diversidade, rigor e qualidade.
Essas políticas públicas não podem ignorar as dificuldades de sobrevivência das empresas de comunicação e o crescente desemprego entre os jornalistas, bem como os salários indignos e os vínculos precários destes profissionais treinados para reforçarem a capacidade de lermos o mundo que nos rodeia, para tomarmos decisões conscientes e esclarecidas.
Da esquerda à direita, os partidos políticos acompanharam as preocupações do Presidente e admitiram debater o papel do Estado - resta agora saber se vão tomar iniciativas concretas para o fazerem.
Os riscos existem, mas estou em crer que muitos dos receios derivam da confusão entre Estado e Governo e serão minimizados com a adoção de um sistema transparente, com regras muito claras.
No atual contexto, o Estado não pode alhear-se da importância de garantir uma informação de qualidade e a figura de Presidente da República é a mais adequada para promover o debate sobre o assunto, pois tem capacidade de agregar os diferentes atores do setor, que têm, muitas vezes, posições divergentes e antagónicas.
Neste caso, a questão está no como, na escolha da estratégia mais eficaz, garantindo que não se transforma numa intromissão indevida e indesejada.
Falemos, pois, sobre o tema tabu e desmistifiquemos ideias preconcebidas e mitos sem fundamento.
Como dizia Manuel António Pina, ainda não é o fim do mundo, é apenas um pouco tarde. Está na hora.
*Presidente do Sindicato dos Jornalistas