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O grande desafio desta semana no combate ao novo coronavírus é garantir que dentro dos lares de idosos e das prisões não ocorra uma tragédia: o número de mortes que pode ser provocado pela incapacidade de resposta adequada à contaminação nesses locais é potencialmente gigantesco e todo o trabalho de contenção do impacto da doença que os portugueses fazem, ao manterem o distanciamento social e ao fecharem-se em casa desde há duas semanas, pode acabar por parecer inútil.
O número de mortes nos lares de idosos e nas prisões, se ultrapassar um valor assimilável pela comunidade, além de ser por si só uma tragédia humana intolerável vai empurrar o país para um sentimento nacional de derrota, de perda da tantas vezes designada, pelos políticos, "guerra" contra o coronavírus.
Ora, se aceitarmos essa semântica do marketing político como boa, teremos então de continuar o raciocínio na mesma linha e pensar nas consequências deste suposto "estado de guerra": é que um país derrotado numa guerra paga sempre um enorme preço.
Qual seria o preço a pagar por Portugal se, daqui a três meses, o sentimento generalizado no país for o de que "perdemos a guerra contra o coronavírus?".
Há um preço que me parece óbvio: a liderança política e económica do país (Presidente da República, Governo, Assembleia da República, líderes do Serviço Nacional de Saúde, da Segurança Social, banca, patrões das grandes empresas, para não falar da inoperante e nada solidária União Europeia) entrará num colapso de credibilidade tão profundo que as pessoas tenderão a concentrar aí toda a frustração, toda a raiva que sentirão face a tão enorme desgraça.
O primeiro preço a pagar, caso o sentimento de perda de "guerra" contra o coronavírus venha a prevalecer, será a destruição das lideranças das instituições políticas, económicas, sociais e empresariais que temos - e isto pode levar a algo ainda mais sério, que é o povo decidir mesmo acabar com as instituições saídas do 25 de abril de 1974.
E mesmo sem derrotas, todas as guerras têm um custo, para além das vidas humanas perdidas no combate. São os tradicional e sinistramente designados "danos colaterais".
Nesta guerra já há milhares de "danos colaterais": são batalhões de desempregados que estão a ser criados de um dia para o outro, sobretudo de pessoas que trabalhavam a recibo verde ou que tinham contratos temporários, seja na hotelaria ou na restauração, seja em grandes empresas que subcontratam serviços. Oficialmente, muitos nem são desempregados - apenas, como formalmente são prestadores de serviços, deixaram de ter quem lhes encomendasse trabalho e, por isso, nem contarão para as estatísticas do desemprego.
São trabalhadores que estão a ser despedidos, sem apelo nem agravo, pelas empresas que não conseguem enfrentar a paragem de atividade ou pelos patrões que, com frieza, querem aproveitar a situação para fazer uma "limpeza" aos seus quadros de pessoal ou reformular a produção.
A semana passada disse aqui ser decisivo para o futuro de milhões de pessoas a qualidade das medidas de curto prazo, na área económica, que fossem decididas pelo Governo, e que essas medidas deveriam englobar ajudas diretas aos trabalhadores e não só às empresas e aos núcleos familiares (e apoiar famílias não é a mesma coisa que apoiar trabalhadores, embora ambos necessitem de ajudas).
Ontem à noite, ao ver o comentário na SIC de Marques Mendes a elogiar as medidas governamentais (o que me parece refletir o sentimento geral dos políticos ditos moderados e da maioria de quem faz opinião na comunicação social) reparei que nem uma única vez, nessa longa intervenção do político-comentador, se usou a palavra "trabalhadores".
Marques Mendes falou inúmeras vezes na economia, nos empresários, nas famílias, mas nunca falou de medidas de apoio aos trabalhadores ou da situação dos trabalhadores - mesmo quando se referiu ao problema do desemprego.
Isto não acontece por Marques Mendes ou o tipo de políticos que ele aqui simboliza terem alguma coisa de especial contra os trabalhadores ou serem más pessoas, nada disso. O que este vocabulário mostra é que este tipo de políticos concentra as soluções para a sociedade apenas e exclusivamente na forma como as empresas funcionam, na suposição de que se elas tiverem condições para funcionarem bem, o resto da sociedade também funcionará bem... mas, na realidade, como a vida demonstra tantas vezes, as coisas não são bem assim.
Voltando à semântica da "guerra": o ataque que sofremos do novo coronavírus, rápido e quase sem aviso, provocou uma paragem repentina de grande parte da atividade produtiva do país. A maioria das empresas está quase parada e, mesmo se funcionasse normalmente, provavelmente não tinha clientes ou teria muito poucos.
Quando o governo decidiu pacotes de apoios às empresas para se manterem a funcionar, na presunção de que essa é a maneira de salvar empregos, prometendo até prémios a quem não despedisse mas mandasse os trabalhadores para casa em regime de lay off, parece ter-se esquecido que essa paragem ou quase paragem da produção, que se arrastará até junho ou julho, fará com que muitos gestores percebam que a recessão que se seguirá será tão violenta que mais vale prescindir agora dos apoios do governo e despedir o maior número de trabalhadores que for possível.
Despedir agora, quando há um contexto sócio-político que torna mais aceitável tal medida do que, provavelmente, acontecerá daqui a uns meses, quando a guerra ao coronavírus terminar, é para estes empresários o mais racional e o mais acertado a fazer - e é por isso que hoje somos confrontados pela CGTP com uma lista de dezenas de empresas que, antes mesmo de os apoios do governos estarem disponíveis, trataram de despedir.
A conclusão é, portanto, esta: as medidas do governo de apoio às empresas não garantem que os trabalhadores têm o emprego protegido.
É preciso ser mais direto na proteção ao trabalhador do que adiar essa proteção para mais tarde quando for, provavelmente, ineficaz.
Quando a "guerra" ao coronavírus terminar, não é só o número de mortos que vai decidir se Portugal se sente ou não derrotado no final do combate - o número de desempregados será, igualmente, decisivo para isso.
Como escrevi antes, as instituições podem não sobreviver a um eventual sentimento de derrota nesta guerra e, sem instituições, a capacidade de todos nós conseguirmos formas de, coletivamente, vencermos a outra guerra que vem logo a seguir - a guerra à recessão económica - será muito reduzida: até porque, sem trabalhadores a trabalhar, não há vitória possível à recessão.