Corpo do artigo
Começo com uma das melhores cenas do filme "O Padrinho", de Francis Ford Coppola. Um homem, que até então tinha vivido sempre na legalidade e afastado da Máfia, pede ao Padrinho (a personagem de Marlon Brando) que faça justiça para a sua filha, matando os homens que a violaram e deixaram desfigurada. Quando pergunta a Brandon quanto dinheiro pretende para fazer isso, este ofende-se e responde-lhe: "Não te farei isso por dinheiro, far-te-ei isso por justiça e se me o pedes como amigo". O outro personagem pede-lhe então a sua amizade e Brandon conclui dizendo: "Um dia, e esse dia pode nunca chegar, posso vir a pedir-te um favor, mas, até esse dia, aceita o que vou fazer por ti como um ato de justiça". Esta cena revela que, ao contrário de como é frequentemente tratada entre nós, a corrupção raramente resulta de contrapartidas diretas. Ela resulta, muito mais frequentemente, de relações de dependência que se criam.
TSF\audio\2021\03\noticias\22\22_marco_2021_a_opiniao_de_miguel_poiares_maduro
Vem isto a propósito da discussão gerada entre nós pela proposta do PSD que alarga as obrigações de transparência dos políticos, passando a obrigar a declarar a pertença a diferentes associações. Afinal, até onde deve ir a obrigação de transparência na política? Al Gore disse que um governo do povo e para o povo necessita de ser transparente para o povo. A transparência é uma condição instrumental ao escrutínio e responsabilização política e à garantia de um direito igual de participação democrática. É um meio para nos permitir uma verdadeira discussão democrática, na qual todos devemos ter uma voz igual e tudo o que determina uma decisão é conhecido e suscetível de debate e escrutínio por todos.
Garantir esta transparência exige conhecer o que acontece no processo. Quem participa, de que forma e com que informação e argumentos. É o que se chama, em relação às leis, de pegada legislativa. Apesar de alguns passos positivos recentes, estamos muito longe do que necessitamos. Como já defendi no passado, a agenda dos decisores públicos devia ser pública (por ex., com quem reuniram e para discutir o quê). Isto é o que já acontece em muitos outros Estados e na União Europeia.
Mas não basta, igualmente, conhecer o que acontece no processo democrático. É necessário conhecer que interesses e relações têm os decisores políticos que nele participam. Isso tem três funções: primeiro, ajudar a contextualizar as posições políticas que tomam e, em consequência, o sentido que lhes atribuímos e a confiança que nelas decidimos depositar; segundo, insular esses decisores de eventuais pressões daqueles que com eles têm relações de dependência ou proximidade (uma vez que sabem que essas relações estão sob escrutínio); terceiro, conhecer algumas das preferências políticas desses decisores que, de outra forma, podem permanecer escondidas (se um político pertencer, por ex., a uma organização como o Ku Klux Klan, que professa valores racistas, isso é obviamente relevante).
A minha opinião é que, com exceção daquilo que possa conduzir a uma obrigação de revelação de uma preferência religiosa ou sexual por ex., a transparência exige o conhecimento da participação dos decisores políticos em associações cívicas, seja a maçonaria, um clube de futebol ou uma associação de caça ou de proteção dos animais. Por um lado, ser membro de uma destas associações revela preferências desse político que podem ser relevantes para a nossa escolha democrática. Se um deputado pertence a uma loja maçónica que continue a excluir as mulheres, isso é uma informação que os eleitores têm direito a conhecer. Por outro lado, os interesses ou regras de funcionamento dessas associações podem gerar riscos de conflitos de interesse que os cidadãos devem ter o direito de avaliar. Imaginem que um responsável público atribui um contrato a alguém que é o líder da sua associação. Isso deve poder ser conhecido. Isto não implica nenhum juízo de princípio contrário a essas associações. Estas podem prosseguir os objetivos mais louváveis. Mas é também por isso que não devem recear que os seus membros, que sejam políticos, estejam sujeitos a esta obrigação de transparência.