Foi a vitória que se esperava e pelos números que, mais ou menos, se esperavam. O PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), liderado por Pedro Sanchéz, vence as eleições com quase 28,7% dos votos e 123 deputados eleitos. Mas não dá - ou não deve dar - para governar sozinho.
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Não é uma vitória por pouco, ou "poucochinha", como diria o colega ibérico António Costa, mas é, ainda assim, um triunfo que não garante uma maioria para governar. Tem, no entanto, méritos incontestáveis, desde logo a maioria dos senadores (121 em 208) na câmara alta, o que atira por terra as pretensões do Vox de matar a Espanha plurinacional, suspendendo as autonomias como fazia parte do programa eleitoral do partido - sim, de extrema-direita, basta ler mesmo os cem pontos do programa eleitoral, que, com 24 deputados eleitos, é a grande novidade do próximo parlamento espanhol.
Pedro Sanchez tem demonstrado, ao longo dos últimos anos, mais coragem de seguir em frente perante cenários de alguma adversidade do que propriamente geniais rasgos de criatividade. Mas depois de ter conquistado o partido quando tudo apontava para que a vencedora fosse a andaluz Susana Diaz (que acabaria por perder o bastião socialista do sul, hoje transformado em laboratório político do Vox, de extrema-direita), depois de ter ascendido à liderança do país sem precisar do amparo de dinossauros socialistas como Felipe Gonzalez, depois de ter forçado a queda do governo de Mariano Rajoy num momento de recuperação económica do país (após crise profunda com o mesmo governo e a mesma receita que outros, mais ou menos voluntariamente, se empenharam em praticar), depois de ter sido rápido a avançar para eleições antecipadas quando percebeu que os nacionalistas catalães lhe tiravam o tapete antes da aprovação das contas do Orçamento do estado (porque Sanchez, é certo, metera na gaveta promessas admitidas, senão feitas), depois de ter derrotado um triunvirato de direita (PP, Cuidadanos e Vox), o homem de 47 anos que conseguiu a primeira vitória eleitoral para os socialistas em mais de uma década, precisa mesmo de aliar criatividade ao pragmatismo e humildade à coragem.
Sim, é verdade que Sanchez fez apelo ao voto útil para travar o triunvirato de direita, numa campanha baseada no medo à extrema-direita, mas também nunca deixou de debilitar o Podemos, único parceiro de coligação nesta altura admissível para os socialistas. O contrário não foi verdade e Pablo Iglésias estendeu provavelmente mais a mão do que as suas hostes alguma vez admitiriam, mas foi essa aproximação ao centro e o ter aparecido como elemento moderador nos debates televisivos que terão parado uma hemorragia de representatividade que ficou na perda de dez mandatos face a 2016.
Carmen Calvo, a vice-presidente do governo, já admitiu que o PSOE vai tentar um governo solitário, governar sem a coligação Unidas Podemos, liderada por Pablo Iglésias. Tentar não é o mesmo que conseguir e o que vier a ser conseguido será certamente o resultado de muitas negociações e equações políticas, que podem passar por uma coligação (Iglésias já reiterou essa disponibilidade), acrescida de acordos de incidência parlamentar com nacionalistas bascos e/ou catalães. Bastará a abstenção de nacionalistas bascos (PNV e EH-Bildu), da Esquerda Republicana da Catalunha, que certamente não acontecerá sem indulto após sentença (Sanchez fez questão de dizer, nos debates televisivos na reta final da campanha, que não faz sentido especular sobre indultos a pessoas que não foram condenadas) ao seu líder Oriol Junqueras, para que o novo governo socialista com o Podemos possa viabilizar o pacote legislativo essencial para a governabilidade do país. Não será uma geringonça de esquerda, mas será uma geringonça guinada à esquerda, que deve incluir os nacionalistas conservadores (PNV) mais acostumados à barganha que permite concessões em troca da governabilidade nacional.
Ao contrário do que algumas análises chegaram a admitir, o PP fica em segundo lugar com 16,7 dos votos e 66 deputados eleitos. Continua a ser o segundo maior partido mas perde 71 deputados desde 2016 e conseguiu menos três milhões e meio de votos. Aznar deve estar arrependido de ter apadrinhado Pablo Casado, fraquinho para Sanchez mas também para Rivera. Os militantes de um partido estruturante da democracia espanhola (finalmente liberto do franquismo nele desde sempre acantonado, agora no Vox) devem lamentar o facto de Casado ter feito jus ao seu nome e trocado juras de amor com um discurso de direita radical, tendo perdido o centro.
Do mesmo se pode queixar - por culpa própria - Albert Rivera e o seu Cuidadanos que, abandonando essa matriz ideológica de centro liberal, se deixou contaminar pelo Vox e arrastou o PP para o mesmo tipo de narrativa. Não conseguiu ser o segundo partido e cometeu suicídio governativo (as ressurreições nunca estão fora de hipóteses e, para os crentes, talvez menos ainda) ao impor um "cordão sanitário" ao PSOE. Erro de cálculo grave que, no entanto, não pode fazer esquecer que estamos na presença de um partido que aumentou em 25 a sua representação parlamentar.
Nas eleições mais ideologicamente polarizadas como não havia memória na democracia espanhola, o Vox faz uma entrada de rompante no parlamento espanhol mas acaba por não conseguir o seu maior objetivo: tirar Sanchez da Moncloa e ser decisivo para a formação de uma maioria de direita. A estridência nacionalista espanholista vai ter Abascal e mais 23 vozes mas com limitadíssima capacidade de influência no processo de tomada de decisões políticas. Já o impacto que a votação no Vox pode ter nas próximas eleições para o Parlamento Europeu, qualquer prognóstico é demasiado arriscado.
Como é moda em vários - cada vez mais - sítios na Europa, Santiago Abascal lidera um partido bastante nacionalista, que nega o caráter plurinacional do estado espanhol e que defende medidas que significariam retrocessos consideráveis em matéria de direitos para amplas camadas da população, desde as mulheres de uma forma geral a toda a população LGBT. Não é apenas o rosto moderno do franquismo, é a expressão da onda de nacionalismo e populismo de extrema-direita que tem alastrado na Europa e nos EUA. Mas ao contrário do que aconteceu noutros países europeus, como os conservadores britânicos fizeram com o UKIP ou a CDU alemã com a AfD ou o En Marche com a Frente Nacional, em Espanha as outras formações políticas de direita ou centro direita não criaram um cordão sanitário em torno do Vox. Agora, que se amanhem.
Afastado dos debates televisivos pela Junta Eleitoral Central por não ter representação parlamentar, o Vox teve uma estratégia de comunicação afastada do estilo clássico, vive mais de um conflito interno no estado Espanhol (a Catalunha) do que propriamente da bandeira clássica deste tipo de partidos: a imigração. Com a insistência na mão dura sobre o independentismo catalão, Pablo Casado e Albert Rivera não só legitimaram a extrema-direita como adotaram uma boa parte do seu discurso truculento, algo que já se provou ser um erro colossal - na perspetiva da direita mais ou menos moderada - noutros países da Europa, como em Itália.
Ficaram de fora da campanha mas vão certamente fazer parte das negociações do PSOE com a coligação Unidas Podemos para a formação do governo, os temas que mais importam a Espanha nesta altura: a fraca produtividade e desaceleração económica (crescimento de 1% na economia, rendimento à volta de 75% do registado na Alemanha, o mesmo nível que Espanha já tinha alcançado há... 22 anos; ou seja, o crescimento económico em Espanha está estancado desde os anos noventa do século passado, afirmando a OCDE diz que Espanha é o quatro país desenvolvido mais desigual), o impacto do Brexit, a sustentabilidade da segurança social (lá como cá, pressionada pela demografia e por interesses dos fundos privados), as mudanças energéticas para fazer face às alterações climáticas.
E sim, as autonomias ou conflitos independentistas vão continuar a marcar o debate político. Preservando o marco constitucional de 1978 ou discutindo-o e revendo-o, se necessário for embora não haja maioria política para isso. E o nacionalismo vai continuar a marcar o debate porque, por exemplo, a Esquerda Republicana da Catalunha, com uma subida de 9 para 15 deputados em Madrid e quase o dobro dos votos em relação a 2016, pode ter a chave da governação. Embora não tenha (para já) a chave para tirar Oriol Junqueras e companheiros da cadeia. Pode ser que esteja no mesmo chaveiro pós-eleitoral. Isso sim, seriam boas notícias para a maturidade democrática de um dos mais importantes países da Europa.