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Os programas que sempre me "fizeram" mais nervos na Televisão são aqueles de questionário, tipo Joker ou Quem quer ser milionário. Não é que saiba tudo, calma aí, mas muitas vezes me irritei por saber mesmo a resposta e ver o pobre concorrente espalhar-se, sem honra ou dinheiro. Num programa desses, há vários anos, exibiram-se alguns concorrentes especialistas nesta ou naquela matéria. Assisti por acaso à prestação de uma senhora, que se apresentava como especialista em Eça de Queirós mas que não foi muito longe porque lhe faltava algum domínio da obra em questão. Essa obra era o díptico Civilização/As Cidades e as Serras que juntamente com a história de Artur Corvelo, o poeta da Capital, constitui, para mim, o génio mais brilhante do autor que não fora Português seria admirado universalmente, ao nível de um Balzac que tanto citava, de Victor Hugo ou até de Machado de Assis, este último que lhe escrevia cartas indecorosas a corrigir semântica e gramática. Se a literatura fosse um ringue de boxe, o nosso diplomata venceria o autor do Brasil por K.O. ao primeiro assalto.
A história comprimida do conto Civilização era boa demais para não se espraiar num romance completo. O tédio e o desassossego de Jacinto de Tormes, contado pelo seu companheiro de viagem Zé Fernandes, são afogados pelas vistas e sabores do Douro, numa peregrinação bonita até à simplicidade das coisas. A vitória pagã do chamamento da terra é um final feliz e exemplar, que derrotando a civilizada disposição do protagonista, lhe arruma também as ideias, conferindo uma nova ordem à sua vida interior. Afastado pelo destino das invenções que o aproximavam do mundo, dos banquetes que só sabiam à sofisticação do cozinheiro, das prateleiras a rebentar de conhecimento ao serviço da humanidade, Jacinto encontra a paz numa colher de pau, um par de socas e meio-jornal na noite mágica de Tormes.
Há duas semanas sentava-me eu num restaurante só para músicos no festival de Verão Hellfest, França, por onde passaram cerca de 60.000 pessoas por dia. Tinha-me acabado de servir na zona de catering luxuosa que alimentava quem entretinha o público e, com o meu copo de Borgonha na mão, juntei-me aos meus colegas à mesa. Enquanto comemos e bebemos alegremente, vimos no circuito interno de Televisão do Festival os Whitesnake e os Def Leppard a tocarem para milhares de pessoas. Na pausa que fiz para ir buscar um café, entram os ZZ TOP em palco. Quando regresso ao camarim para fumar, ouço uma explosão que quase me leva o líquido de dentro do copo. São os Kiss, ali a duzentos metros, a rebentarem pirotecnia e a tocarem as canções que eu ouvia vindas de dentro da máquina de flippers dos Kiss que eu jogava quando era miúdo numa tasca na Brandoa.
Nesse momento veio-me à cabeça a frase do humilde Brás, o "caseiro" de Tormes, que diagnosticou o mal do menino Jacinto mal o viu, rodeado de comodidades que lhe estavam a comer a vida por dentro: "vossa inselência sofre de fartura".
Dia sim, dia não, vemos citações do livro de Orwell, 1984, lançado em 1949, numa Europa moribunda pelo totalitarismo nascido do que perigosamente se desconsiderou na altura como minorias políticas. É um livro atual, que parece ter antecipado ou porque não influenciado, a nova linguagem política, técnica e social que hoje se usa ao serviço do status quo conforme Orwell previu. Quando Eça põe Jacinto em cima de um burro a caminho do solar, também fazia futurologia e ao contrário de Orwell apontava um caminho rumo a um final bem mais feliz. E é por isso que acho que Eça foi mais longe que Orwell.
Olhou para o abismo e contornou-o a cavalo num burro até chegar ao paraíso. Diagnosticou a doença dos Homens como fartura, que nos enche até aos olhos e turva o olhar não só perante o que é bonito, mas também perante o que é realmente feio. Se não podemos todos "eremitar" no Douro, leiamos apenas e só este livro porque mais que outra verificável distopia, ou que um livro milagreiro de autoajuda/iluminação, narra a história dos gostos simples da humanidade, algo que nos esquecemos de saborear por termos a boca cheia de mentiras.