A TSF convidou especialistas a analisarem o OE2018 ao longo de toda a semana. Hoje escreve Ricardo Paes Mamede, economista e professor no ISCTE.
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O senso comum dirá que nenhum governo pode reduzir os impostos, aumentar a despesa pública primária (salários, pensões, serviços públicos, investimento público, etc.) e ainda assim obter uma redução do peso do défice e da dívida pública na economia. Mas nisto o senso comum está errado. E está-o porque ignora que o espaço de possibilidades da política orçamental não é apenas definido pelos elementos referidos.
No contexto actual, a margem orçamental é influenciada por outros dois elementos relevantes: o crescimento da economia e a descida dos juros da dívida pública. O facto de a economia ir crescer em 2017 acima do que se previa quando o Orçamento de Estado (OE) em vigor foi concebido significa que há espaço orçamental que não foi utilizado este ano e que poderá sê-lo no próximo. O facto de se prever para 2018 um crescimento económico razoável em termos nominais (o que inclui a ligeira expansão do volume de produção e um aumento dos respectivos preços) implica que o espaço orçamental aumente um pouco mais. Tudo isto permite, por exemplo, que as despesas do Estado com salários e pensões aumentem, mas que o seu valor em percentagem do PIB diminua (como se prevê que aconteça em 2018). Por fim, a previsível descida da despesa com juros contribuirá para alargar o espaço orçamental em 2018.
Voltemos então ao início: é possível simultaneamente aumentar despesa primária, descer impostos e cumprir os compromissos de consolidação orçamental em 2018? Sim, é possível. E é isso que o governo se propõe fazer, embora com evoluções modestas em cada uma das três variáveis referidas. A partir daqui há outras questões que ficam por responder: primeiro, sendo possível, é desejável? Segundo, sendo desejável, em que rúbricas da despesa e da receita fiscal faz sentido mexer? E que critérios devem guiar essas mudanças?
O actual governo construiu a sua legitimidade política com base na afirmação da possibilidade e da desejabilidade de prosseguir simultaneamente os três objectivos acima referidos. Foi isso que fez nos dois primeiros orçamentos da legislatura e é isso que faz novamente no OE 2018. Desta forma, distancia-se dos partidos à sua direita, que defendiam (ainda defendem?) a redução da despesa pública; e também, em certa medida, dos partidos à sua esquerda, que defendem a condução de uma política orçamental liberta dos constrangimentos impostos pelas regras da UE. No entanto, é difícil conceber a possibilidade de reduzir substancialmente a despesa pública sem regressar a um clima de crispação política e social, e sem penalizar a retoma económica. Por seu lado, é difícil conceber um cenário de incumprimento com as regras orçamentais da UE que não implicasse um confronto mais ou menos aberto com as lideranças europeias, o que traria custos incontornáveis para a (modesta) retoma económica e do emprego.
A menos que, neste momento, se privilegiem rupturas sistémicas face a melhorias efectivas nas condições económicas e sociais, é difícil não concluir pela desejabilidade da estratégia orçamental que está implícita na proposta de OE para 2018. É seguramente uma conclusão frustrante para muitos (é-o para mim, em certa medida), não deixa de ser verdadeira por isso.
Posto isto, a proposta agora em discussão reflecte no essencial os valores e prioridades da maioria parlamentar que o suporta. Em primeiro lugar, procura combater as desigualdades, reduzindo os impostos para as famílias de menores rendimentos, assegurando um aumento das pensões proporcionalmente maior para quem recebe pensões mais baixas, e reforçando o orçamento para prestações sociais.
Em segundo lugar, procura reverter alguns dos aspectos considerados mais negativos do chamado "programa de ajustamento", concluindo a eliminação da sobretaxa de IRS, descongelando (faseadamente) as progressões na função pública, repondo o pagamento das horas extraordinárias aos trabalhadores do Estado, dando mais um passo para terminar com a existência injustificável de trabalhadores precários na administração pública, e integrando de 3.500 professores contratados (que são, na verdade, necessários em permanência).
Em terceiro lugar, utiliza o sistema fiscal para influenciar a afectação de recursos em sentidos considerados socialmente desejáveis, por exemplo: penalizando o consumo de alimentos com elevado teor de sal (após a experiência bem sucedida de agravamento fiscal das bebidas açucaradas), procurando assim contrariar hábitos de consumo reconhecidamente nocivos e com impactos negativos a prazo nas despesas públicas com saúde; isentando de impostos os senhorios que arrendem casas a preços acessíveis, procurado assim responder a um dos problemas crescentes das classes médias urbanas; ou reduzindo os impostos para os senhorios que arrendem casas com carácter permanente (por oposição ao arrendamento para turistas), contrariando assim um dos efeitos nefastos do forte crescimento do turismo nas principais cidades portuguesas.
Por fim, aumenta o investimento público face ao ano anterior (de forma expressiva em termos percentuais, embora mantendo-o muito abaixo da média europeia em relação ao PIB).
É sempre possível defender que as prioridades deveriam ser outras. Para grande parte dos intervenientes e dos observadores do processo, o OE é sempre uma oportunidade perdida: ou porque não se baixou tanto os impostos como desejariam, ou porque não se reforçou suficientemente o investimento público, ou porque as rupturas sistémicas consideradas indispensáveis (variando estas de acordo com o posicionamento de cada um no espectro político) foram mais uma vez "adiadas". Mais difícil é negar que esta proposta de Orçamento é coerente com os dois anteriores, com os acordos de maioria parlamentar que sustentam a actual solução governativa e, no essencial, com os programas eleitorais dos partidos que a apoiam. Numa democracia, não é coisa menor.