"A Opinião" de Fernanda Câncio na manhã da TSF.
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Não sei se o juiz Neto de Moura vai incluir-me nos processos que anunciou contra quem considera tê-lo ofendido.
Se o fizer, é um direito seu. A existirem, os processos serão uma excelente experiência para a justiça portuguesa. Vai ser interessante observar como resolverá neste caso o diferendo entre os direitos de personalidade e a liberdade de expressão.
Se vai adoptar a visão de que tudo se pode dizer que tem sido regra quase geral ou se o facto de estar em causa a douta sensibilidade de um desembargador vai fazer diferença.
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Será igualmente interessante perceber o que o juiz Neto de Moura considera pessoal e profissionalmente ofensivo.
Trata-se de alguém que, não à mesa do café mas em decisões tomadas em nome do povo, insistiu no termo "adúltera" para apelidar mulheres vítimas de violência doméstica e as insultou com base nisso.
O juiz ofendeu assim pessoas que nunca viu e que perante ele apareceram como ofendidas nos recursos que lhe chegaram às mãos. Ofendeu-as por serem mulheres, vitimou-as por serem vítimas. E fê-lo investido do poder que lhe demos para julgar em nosso nome.
Que usou - usurpou, portanto -- esse poder para ofender foi reconhecido no processo disciplinar de que foi alvo. Disseram-no o presidente do Supremo Tribunal e o vice presidente do Conselho Superior de Magistratura. O primeiro escreveu: "As expressões proferidas são ofensivas, desrespeitosas e atentatórias dos princípios constitucionais e supra constitucionais da dignidade e da igualdade humanas." O segundo referiu que "no limite, até possam assumir relevância jurídico-criminal."
Nenhuma das ofendidas pôs um processo a Neto de Moura. É pena, mas percebe-se. Quem, depois de se ver insultada por um juiz, acreditaria na justiça da justiça?
Quem pode, aliás, acreditar numa justiça que durante anos assistiu a este comportamento, co-assinou estas decisões e nunca fez uma queixa à inspecção dos tribunais? Quem pode perdoar aos procuradores, aos advogados, aos juízes, aos escrivães que tudo isto viram e calaram?
Porque não foi a justiça que denunciou Neto de Moura. Não esqueçamos: foi o clamor público perante a revelação, em Outubro de 2017, do acórdão conhecido como "da mulher adúltera", que obrigou ao processo disciplinar. Não esqueçamos a carta de juízes a defender o colega. E a Associação Sindical de Juízes, que insiste em ver nas críticas uma conspiração contra a autoridade e independência dos tribunais, em vez de perceber que são a incompetência, o abuso de poder e o corporativismo que os minam.
Não gosto de linchamentos. Não tenho prazer em ver um encarniçamento generalizado contra uma pessoa. Joaquim Neto de Moura não tem condições para ser juiz - nem em casos de violência doméstica nem em nenhum, porque abusa do seu poder e porque "desconhece ou despreza", como escreveu um membro do Conselho Superior de Magistratura, "valores essenciais do Estado de Direito". Mas reformá-lo não reforma o sistema que o produziu, protegeu e quer mantê-lo. Massacrar um homem é fácil - atacar o sistema exige coragem e persistência. E, sobretudo, não tem piada.
*a autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990