Os hospitais privados já representam mais de um terço da capacidade instalada do país e no ano passado cresceram em todas as dimensões. Fizeram mais consultas, mais cirurgias, mais partos, mais urgências - em comparação com o ano anterior, mas não só, ultrapassando também alguns valores pré-pandemia. Não há nada de preocupante nestes dados lidos por si só. Pelo contrário, significam que tem havido capacidade de investimento do setor privado e que o aumento da oferta alarga a possibilidade de escolha por parte dos portugueses. Até porque o crescimento não se fez à conta de parcerias com o setor público: as cirurgias contratualizadas pelo SNS no âmbito do programa de redução das listas de espera caíram 10%.
É inevitável, no entanto, olhar para o que estes resultados nos dizem sobre o acesso dos portugueses aos cuidados médicos. Procurar explicações para este forte crescimento pressupõe olhar de frente para um número impressionante: mais de cinco milhões de pessoas têm seguro ou subsistema de saúde e escolhem os hospitais privados como primeira opção. Destes, um número expressivo e até inquietante subscreve um plano de proteção na doença: são atualmente 3,3 milhões. O valor quase duplicou numa década.
Estamos a falar, no limite, de utentes que desconfiam do SNS e se sentem mais protegidos com uma cobertura adicional. Sendo o SNS uma das mais relevantes conquistas da nossa democracia e uma garantia de equidade no acesso aos serviços, o que estes dados revelam é haver cada vez mais uma linha que separa os portugueses com possibilidade de escolher e os que, por não terem essa capacidade financeira, dependem exclusivamente da resposta pública.
Mais uma vez, apesar da duplicação de encargos para acautelar o acesso a cuidados médicos, nada haveria de errado neste tema, se essa liberdade de escolha significasse maior eficácia e rapidez de resposta do SNS. Os últimos dois meses mostraram, pelo contrário, problemas graves de organização e fluidez do sistema. Com uma nova fase pós-pandemia e a afluência aos serviços de urgência a bater recordes, ficaram novamente expostos problemas na referenciação e limitações na resposta dos cuidados primários. Cerca de 1,3 milhões de portugueses ainda não têm médico de família. As listas de espera continuam absurdas nalgumas especialidades e as assimetrias regionais exigem respostas mais agressivas por parte do Governo.
Agora que terminou a resposta de emergência, na qual o país esteve focado nos últimos dois anos, são muitos os desafios que a equipa de Marta Temido tem pela frente. A começar pela escassez de recursos humanos e pela necessidade de fixar os melhores nos serviços públicos. Não há problema nenhum no crescimento dos hospitais privados e na livre escolha de todos os que têm recursos para procurar cuidados particulares. Desde que esteja assegurada a qualidade e a universalidade no SNS e que ninguém fique indefinidamente em lista de espera. Desde que não haja, no fundo, uma Saúde para quem tem dinheiro para pagar um seguro, e outra para quem não tem.