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O ano de 2020 foi marcado pela ingerência do Estado no espaço privado. Durante meses, aceitamos que a Lei adentrasse pelas nossas vidas e suspendesse abruptamente o direito de reunião e manifestação, o direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território, o direito de resistência. Consentimos que a legislação regulasse, de forma inédita, algumas glebas da nossa vida familiar, social e profissional.
Mas, quando o primeiro-ministro anunciou esta semana que iria enviar uma proposta de lei ao Parlamento que obriga os portugueses a instalar a aplicação Stayaway Covid em contextos "laboral ou equiparado, escolar e académico", o urro dos que podem urrar foi unânime. Partidos políticos, editoriais e artigos de opinião foram rápidos a destacar a hedionda violação de privacidade.
A quase totalidade dos que apresentam esse argumento são utilizadores de redes sociais, procriando uma possível contradição. A Política de Dados do Facebook diz claramente: "Coletamos o conteúdo, comunicações e outras informações que você fornece quando usa nossos Produtos, inclusive quando você se cadastra para criar uma conta, cria ou compartilha conteúdo, envia mensagens ou se comunica com outras pessoas." Os nossos dados pessoais mais íntimos são armazenados e comercializados por empresas privadas.
A maioria dos partidos que criticam a app também apoiaram os vários programas de digitalização e modernização da administração pública (Portugal Digital, SIMPLEX, etc.) que maximizam a coleta e o uso mais eficiente de dados pessoais dos cidadãos. Alguns das nossas informações mais privadas (as posses, a saúde) são acessíveis a funcionários públicos do Guadiana ao Cávado.
O problema não deve ser então a questão da violação da privacidade, mas a obrigatoriedade do ato. Porém, se for essa a razão, porque é que o mesmo Parlamento aprovou a Lei n.º 17/2019 que obriga os bancos a comunicar à Autoridade Tributária os saldos de contas bancárias acima de 50 000 euros? Se a privacidade bancária de um cidadão pode ser violada para combater a evasão fiscal, porque não pode ser violada a privacidade de movimentos em nome do enfrentamento a uma pandemia global?
Além disso, chama a atenção que a aplicação não solicita os dados pessoais do utilizador, torna público o código fonte e não envia automaticamente dados para um servidor central. A violação da privacidade é residual.
O que a reação poderá acobertar é o inquietante individualismo que escoa entre muitos segmentos da população e dificulta o desenho de políticas públicas. Entre os povos europeus, os portugueses estão entre os que menos confiam em pessoas (7.º lugar entre 27, FFMS) e os que mais acreditam que as pessoas só estão preocupadas com elas próprias (7.º lugar entre 27, FFMS). É como se o nosso individualismo fosse uma expressão contemporânea do desamparo, um reduto para o qual marchamos para nos defendermos do vazio.
Este caso revela também que a maquinaria do sistema nacional de saúde não funciona com habilidade. Para a app funcionar, os médicos que diagnosticam um paciente com Covid-19, deveriam dar-lhes imediatamente um código para inserir no telemóvel. É com esse código que são alertados os outros utilizadores da app que estiveram perto do infetado. Mas os médicos não conseguem fornecer um código imediatamente. Demoram dias, por vezes semanas, derretendo a utilidade da tecnologia.
Precisamos também de trazer mais estatísticos e programadores para avaliar a vertente técnica da aplicação. Funciona? Quais os resultados obtidos em países com apps semelhantes, como a Alemanha (Corona-Warn-App) ou a Suiça (SwissCovid)?
A discussão nobiliárquica em torno da liberdade individual ou da constitucionalidade da app, feita com vozes barítonas e mãos massajadas, desvia as atenções de um país de literacia estreita, de funcionários públicos mortiços e de gentes curtas com escassezes largas. É para aí que deveríamos lançar o olhar.
* Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e Califórnia-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial.