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Para estimular a mais qualificada geração de portugueses a voltar para Portugal, o governo lançou o programa Regressar, disponibilizando um apoio financeiro que pode variar entre poucas centenas a 6536 euros. O conceito é nobre, mas a prática é medíocre. A imprensa informa que "pelo menos 1300 emigrantes voltaram ao abrigo do programa," mas não questiona quantos se candidataram ao apoio apenas depois da decisão de voltar ao país estar tomada ou concretizada.
O valor é muito baixo. Mas, mesmo que fosse muito mais alto, dificilmente um subsídio estatal serviria de gatilho para o regresso a Portugal. A melhor forma de estimular portugueses globais a voltarem é fazê-los sentir que Portugal também é globalizado. Mas o país, apesar do manancial irrefreável de turistas e emigrantes, continua a ser de portugueses e para portugueses.
No início do milénio, recebemos emigrantes qualificados da Europa de Leste. Engenheiros aeroespaciais moldavos trabalhavam nos campos alentejanos e contabilistas ucranianas limpavam casas no Porto. Hoje esperar-se-ia que os seus filhos, portugueses de sobrenome Shevchenko e Kovalenko, estivessem devidamente integrados na sociedade portuguesa e no mercado profissional. Mas foram-se embora. O número de alunos estrangeiros matriculados em universidades portuguesas cresce consistentemente desde 2009, incluindo os de doutoramento. Mas porque não estamos a conseguir reter estas pessoas no mercado laboral nacional, depois da sua formação?
Em 1969 Jorge de Sena, a viver nos EUA, escreveu uma carta a Eugénio de Andrade onde se lamentava que "Portugal nunca assimilou os seus "estrangeirados" - acho que o único que fez carreira foi o D. Afonso III, e foram precisas a Idade Média e uma guerra civil." Porque é que um país europeu com uma história tão atada à conquista do mundo consegue ser tão refratário à absorção do outro?
Os costumes identitários de uma pessoa são assimilados de forma mais intensa em núcleos de transmissão de valores que englobam no máximo 2 ou 3 gerações. E nestas concentrações identitárias, que atingem no máximo os nossos bisavós, geralmente não há estrangeiros. A vasta maioria dos portugueses acima dos 50 anos não convive regularmente com estrangeiros nem fala línguas estrangeiras. O mundo que conhecem é só aquele que se desdobra a partir deles próprios, como se a expansão da sua realidade fosse apenas atingida pela reprodução das suas limitações.
Em parte, isto explica-se pela falta de mobilidade. Quem dessa geração nasceu nas aldeias de Vila Real, Castelo Branco ou Portalegre é quase sempre filho, neto e bisneto de outros portugueses oriundos da mesma região. Até à entrada na União Europeia, caminhos percorridos hoje em 1h de carro pelos rincões do interior levavam quase um dia em cima do dorso espinhoso de uma mula. Vivia-se em semi-isolamento inconsciente, casava-se dentro do mesmo perfil genético, comia-se de acordo com os humores da Natureza local, criavam-se os filhos da mesma forma como eram criados os avós. Só se esburacava para fora da aldeia quem fugisse à guarda, quem emigrava para escapar à fome ou quem não conseguia evitar a tropa e o Ultramar. Para a maioria destes homens do interior, o primeiro toque meninil com o mundo era feito, já adultos, a segurar uma G3 em África. E o contato de um beirão com um portuense, do mesmo batalhão, ou com um ambundo angolano, da tropa inimiga, tinha os mesmos contornos de deslumbramento e assombro.
A melhor forma de sermos alguma coisa é nascer já a sê-lo. E os portugueses acima de 50 anos, que cresceram ensopados apenas com referências locais, só conseguem ser portugueses, apesar de viverem atualmente como arquipélagos banhados de estrangeiros emigrantes ou de jovens sem fronteiras. É uma geração que, devido ao seu isolamento e às suas magras qualificações, acabou por tornar-se insegura e invejosa. Seja o merceeiro numa aldeia beirã ou um empresário de Faro, há geralmente tendência a rechaçar-se aquilo que é diferente. São pessoas que, muitas vezes, só sobreviveram a um contexto de míngua através da comercialização de relações sociais, da troca de favores, da bajulação a pessoas igualmente insuficientes, da sobrevalorização dos pequenos títulos. Como se jogassem Monopólio, muraram os seus minifúndios profissionais para conseguir subsistir num contexto de maior competitividade. Preferem ser os reis de um pequeno reino sem gente do que gentios num grande reino repleto de diversidade.
E assim Portugal vai abrindo fissuras intergeracionais e culturais. Vive hoje no país o maior volume de emigrantes qualificados em idade ativa, mas eles não fazem parte do dia a dia social de uma família tradicional portuguesa. Os núcleos de poder continuam a estar apenas disponíveis para portugueses. Muitos emigrantes já adquiriram nacionalidade, mas nem que memorizem os 10 cantos dos Lusíadas serão alguma vez considerados lusitanos. A comunicação social, a banca, o parlamento, as cátedras académicas, as repartições públicas, os partidos políticos continuam com os portões fechados.
É por isso que o programa Regressar não servirá para atrair os portugueses mais qualificados que vivem no estrangeiro. Para que isso aconteça o país precisa de ter menos Bacos em posições de poder - aquela figura nos Lusíadas que no Consílio dos Deuses discordava que os portugueses deveriam alcançar o seu destino glorioso porque isso levaria a que as suas próprias conquistas no Oriente fossem esquecidas "Se lá passar a Lusitana gente".
Para termos menos Bacos precisamos de uma nova geração no poder, não um novo subsídio.
* Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group e professor na Nova SBE. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e Califórnia-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial.