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Qualquer ação humana, dos gestos mais heroicos aos trejeitos mais terrestres, só pode ser entendida se inserida num código cultural específico. É por intermédio dessa compilação de normas, leis e valores que estabelecemos a motivação, que procedemos à execução e que julgamos a consequência. Esses filtros são sensíveis à geografia e principalmente ao tempo. Em constante transformação, mesmo que lenta, são o resultado do embate de diversas forças presentes em cada sociedade.
Isto não significa que o passado não possa ser questionado. Tem que sê-lo. E o foco tem que estar no próprio processo de configuração desses filtros morais. No passado, os presentes foram construídos principalmente por homens, europeus e brancos. A adjetivação da realidade foi feita unilateralmente por quem usufruiu do privilégio do poder e o arbítrio dos nossos atos foi mais hierárquico do que participativo.
Idealmente, teríamos capacidade de desmumificar a história e redesenhar os códigos morais de cada sociedade para torná-los mais plurais e recíprocos. Com isso, poderíamos fazer julgamentos. Mas isto não passa de um exercício laboratorial e teórico.
É por isso que a historiografia nos presenteia com mais dúvidas com que soluções. Mas temos que tentar fazer uma distinção subtil entre aquilo que é história, ou seja, o estudo das transformações na sociedade humana ao longo do tempo, e o que é a glorificação individual - estátuas, nomes de ruas e de infraestruturas públicas, que entram no campo subjetivo do louvor.
Toda a história merece ser alvo de debate. Devemos ter consciência da sua numerosidade - ela é múltipla, sobreposta e contraditória. A mesma realidade do passado pode ser interpretada de diversas formas por pessoas contemporâneas àquele momento. A ótica com que o historiador Mohammed al-Ifrani descreveu a Batalha de Ued El-Makhzen é diferente de como o cronista Jerónimo Mendonça retratou a mesma Batalha de Alcácer-Quibir. Todas são válidas desde que apoiadas em factos.
No campo da história, deveremos também resistir aos ímpetos julgadores do passado por intermédio de códigos morais vigentes. A consciencialização dos direitos humanos talvez tenha entrado no nosso reportório só a partir do século XVIII, tal como os direitos trabalhistas só começaram a ser respeitados um século depois e a preservação do planeta é um pleito ainda mais recente.
À medida que o nossos padrões culturais e morais mudam, também cambiará a forma como interpretaremos as referências do presente. Em 1989, aquando da inauguração de um novo gerador da central termoelétrica de Sines, o Primeiro-ministro Cavaco Silva e o ministro Mira Amaral louvaram a opção pelo carvão. Com o tempo, as expetativas da sociedade foram mudando.
E o que pensarão os meus netos e bisnetos quando notarem que, no início deste milénio, os seres humanos ainda criavam gado bovino apesar de ser o maior emissor de metano, um dos gases com efeitos mais nocivos para o aquecimento global, com um potencial poluente 25 vezes superior ao dióxido de carbono? E o que pensarão quando souberem que seres humanos, 2500 anos depois de Roma, ainda torturam animais em arenas públicas como atos de entretenimento? E Mário Soares? Será visto como o primeiro chefe de governo do período democrático ou como um Primeiro-ministro que nunca nomeou uma ministra nos três governos que liderou?
A história, mesmo aquela que agora nos envergonha, não pode ser apagada. Precisa de ser objeto de trabalho interpretativo e museológico. Eu acho didático que o meu filho tenha acesso a todos os dados históricos possíveis sobre o Salazarismo. Que todos os símbolos do fascismo sejam reunidos em museus e centros de memória com entrada gratuita. Que todos os pelourinhos que adornam as praças das nossas cidades, símbolos de uma violência abjeta, possam ter a história das vítimas e dos algozes devidamente sinalizada. Que a contribuição fundamental do tráfico negreiro para a manutenção do império português seja discutida com densidade e de forma contextualizada em espaços museológicos. Que nos expliquem porque é que a escravatura contribuiu para a emergência de todas as civilizações antigas, como a egípcia, chinesa, árabe, viking, grega e romana e como é que John Locke pode escrever sobre liberdade ao mesmo tempo que financiava o tráfico atlântico de escravos. Que nos ajudem a conhecer, sem julgamentos geracionais, o dicionário de valores dos vários grupos de pessoas que moldaram ou foram moldados por épocas passadas.
Mesmo sendo um exercício científico, não será necessariamente fácil fazê-lo porque as sociedades têm necessidade de entronizar ídolos como instrumentos de engenharia identitária e patriótica. O questionamento pode ser visto como uma desportugalização. Se fossemos rigorosos, nenhum ídolo do passado resistiria ao coador moral do presente. D. Afonso Henriques assassinou centenas de pessoas que viviam em Portugal há pelo menos 450 anos. O Marquês de Pombal mandou sumariamente torturar e exterminar dezenas de membros de uma família. Ambos seriam vistos como criminosos aos olhos da modernidade. É por isso que todos os vultos do passado precisam de ser lidos sob todos os ângulos, não para apagá-los, canonizá-los ou revisioná-los, mas para que os conheçamos com mais propriedade. É esse o papel do historiador.
O debate histórico, sereno, distancia-se de muitos símbolos públicos de glorificação individual. Uma estátua revela, muitas vezes, apenas o impulso passional e pessoal de quem a financia. É um símbolo fechado à discussão e ao contraditório. Está fora das fronteiras da ciência.
Isto não significa que não possa ser alvo do escrutínio. Eu prefiro usar a Ponte 25 de Abril do que a Ponte Salazar. Incomodam-me as ruas brasileiras que celebram os generais da Ditadura Militar, de Costa e Silva a Castelo Branco. Cabe à sociedade, em toda a sua diversidade, sentenciar se um indivíduo merece ser celebrado emocionalmente num espaço público, que também é seu por direito, ou, em alternativa, entrar no campo da história e ser interpretado de forma racional e contextualizada num espaço museológico.
* Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group e professor na Nova SBE. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e Califórnia-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial.