"A Opinião" de Fernanda Câncio, na Manhã TSF.
O que é um africano? Como se representa? E como se explica isso a uma criança? São algumas das perguntas que gostaria de ter feito à Escola Básica do Godinho, em Matosinhos.
Isto porque a escola entendeu que neste Carnaval as crianças e os professores se "mascarariam" disso, "africanos". E para tal deviam pintar a cara de preto, usar leggings e camisolas pretas, cabeleiras de carapinha e tecidos ditos "africanos". Também se viram argolas no nariz e saias de palha.
O objetivo, disse a Associação de Pais em comunicado, foi "celebrar a diversidade cultural". Perante a polémica, eliminaram as fotos publicadas e recusaram esclarecimentos.
Ficámos, pois, com todas as dúvidas. A começar por esta: porque é que para uma escola portuguesa uma "fantasia de africano" é igual a negros com capulanas e lanças e argolas no nariz e não a uma Nefertiti ou uma Cleópatra, um fez e uma dejelaba ou um traje tuaregue - isto só para ficarmos nas caricaturas folclóricas?
Será porque para estes professores e pais do século XXI África é a da exposição do Mundo Português de 1940, a das "típicas aldeias de indígenas" com estatuto de semipessoas, expostos em zoo humano, como "raça africana"?
Será porque para estes professores e pais a palavra "raça" usada para pessoas é pacífica e "africano" é tão evidentemente um estereótipo de outro, de exotismo e de primitivismo, que nem lhes ocorreu pensar no que sente uma criança negra ao ver um desfile assim - ou ouvir "vamos mascarar-nos da raça africana e pintar a cara de preto, mas tu não precisas, já és uma máscara de Carnaval"?
Essa é outra das perguntas: não há crianças negras ali? Nem professores negros? Não há negros em Matosinhos?
E alguém que leia a parte "valores" do perfil do aluno no site da escola, também não? Eis o que lá diz: "Respeitar-se a si mesmo e aos outros; saber agir eticamente, consciente da obrigação de responder pelas próprias acções; ponderar as acções próprias e alheias em função do bem comum. (...) Demonstrar respeito pela diversidade humana e cultural e agir de acordo com os princípios dos direitos humanos."
Mas se a escola recusa responder pelas próprias acções, que faz a tutela? Nada tem a dizer publicamente sobre o assunto? Está tudo bem? Não, não está.
Oiçam Cristiana Xia Wu, num texto intitulado "A minha etnia não é uma fantasia de Carnaval", no Público . Filha de imigrantes chineses, viu fotos de um cortejo organizado pela Câmara de Marco de Canavezes com crianças e professores "mascarados de chineses" e ficou chocada.
"As fotos levaram-me aos tempos em que não sabia como reagir quando as pessoas gozavam com a minha aparência", diz Cristiana. "Não consigo evitar pensar sobre as coisas que foram ditas quando as pessoas envolvidas estavam a preparar-se para o Carnaval." E conclui: "Quero chamar a atenção para as consequências desse tipo de desfile. Pensem no tipo de cidadãos que querem formar. (...) E eu pensarei nas crianças chinesas que nasceram cá em Portugal e que viram esse espectáculo, tentando encontrar a melhor solução para que elas não se sintam desconfortáveis nas suas peles."
Tão simples: pensar. É suposto ser para ajudar a pensar, abrir horizontes, combater preconceitos, estereótipos e ignorância que a escola serve. Não, de certeza, para mascarar crianças de racistas.
*a autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990