Entre fevereiro e agosto de cada ano, cerca de 160 mil pessoas têm a sua vida escolar monopolizada pelos Exames Nacionais. É um processo potencialmente decisivo para o seu futuro. Mas é também uma romaria a um Portugal da década de 80, aquele que digita só com um dedo e que tem caderneta bancária. A modernização da administração pública portuguesa, visível em algumas áreas, continua a ser panfletária e impercetível em várias outras, deixando a população impotente perante a indolência do Estado.
Uma dessas áreas é a dos Exames Nacionais. Portugal continua atrasado relativamente aos seus pares internacionais. E tudo começa com a inscrição.
O processo é artesanal. Os alunos são obrigados a fazê-la nas secretarias das escolas e a preencher à mão um formulário em papel, com "esferográfica azul ou preta". O logotipo da República Portuguesa, posicionado altaneiro no cabeçalho da folha, dificilmente imprime um ar respeitável ao pedaço de papel. O comprovativo da inscrição é um duplicado feito com papel químico, método inventado na Itália em 1801 e usado na Europa até à década de 90.
No Brasil, 5 milhões de alunos inscrevem-se anualmente no Exame Nacional do Ensino Médio através de um site inteiramente dedicado a todos os detalhes da prova. Cada inscrito pode, posteriormente, aceder à sua página pessoal, com login e senha. Uma assistente virtual, que opera por intermédio de algoritmos de inteligência artificial, responde a todas as dúvidas.
Voltando a Portugal, depois da realização dos exames, as notas são afixadas nas escolas secundárias. Afixadas. Em papel. O uso de telemóveis e de internet atinge 99,4% dos alunos -- é a primeira geração digital portuguesa --, mas o Ministério da Educação ainda não é capaz de desenvolver uma solução online para garantir com segurança o acesso às notas. Algumas escolas afixam as notas à meia-noite, obrigando os alunos a visitas noturnas, o que dá um tom ainda mais dramatizado ao anúncio.
Além disso, a afixação pública das notas contraria o novo Regulamento Geral de Proteção de Dados, que entrou em vigor em 2018, visto que não respeita a privacidade de cada cidadão. Todos podem ver as notas de todos.
Aqui ao lado em Espanha, tal como na maioria dos países europeus, as notas da Selectividad, o exame de ingresso à universidade, são disponibilizadas num site acessível através de "número de usuario y clave."
Em Portugal, se não gostarmos da nota do Exame, temos direito a pedir consulta à prova e requisitar uma reapreciação. Voltamos novamente ao papel. Em vez da solicitação ser feita diretamente no site do Ministério da Educação, os alunos são obrigados a entrar na página apenas para fazer o download dos respetivos formulários, que têm que ser impressos e preenchidos manualmente para serem apresentados presencialmente nas secretarias e papelarias das escolas, que por sua vez os envia para o Ministério. Um desperdício de tempo e recursos que só desestabiliza um estudante naturalmente em estado de ansiedade.
De mais a mais, este ano, esses formulários não foram atualizados imediatamente no site do Ministério. Os nossos funcionários públicos esqueceram-se que os alunos poderiam querer pedir uma reavaliação da prova.
O formulário dá arrepios. É um documento que tem que ser endereçado ao "Exmo. Senhor Presidente do Júri Nacional de Exames," e contem um zigzaque de formalismos museológicos e de obesidades linguísticas.
Nestes emaranhados, surgem dúvidas. Muitas. Por exemplo, se um aluno tiver anulado uma disciplina, a nota que teve na 2a fase do exame nacional dessa cadeira interfere no peso que o secundário tem na média de ingresso ao ensino superior? Os esclarecimentos não estão online. O próprio cálculo da nota de ingresso não é intuitivo e exige que se consultem individualmente os sites de cada licenciatura para conhecer o peso atribuído por cada uma ao exame nacional. No final acaba-se por usar o telefone para pedir esclarecimentos a uma qualquer repartição pública. A sociedade civil também se omite não se organizando para complementar o estado no fornecimento de informações.
É importante compararmos o site da DGES do Ministério da Educação com os correspondentes do UCAS do Reino Unido ou do CUAC do Canadá. É a diferença entre um site administrativo e portais didáticos ou entre querer informar unilateralmente ou esclarecer participativamente. Ou entre cumprir um serviço público ou não.
A vista curta também se revela na exigência de que todos os alunos que realizam os exames, mesmo os outros lusófonos, respondam apenas de acordo com o português europeu. Quem escreve cultamente em português, na vertente brasileira ou africana, é informado pelos professores de português em Portugal que os seus vocábulos e estruturas linguísticas estão "erradas", tese reforçada pelos corretores dos exames que decepam pontos a cada "desvio" da norma. Poder-se-ia argumentar que os corretores não sabem que os alunos são estrangeiros e é fácil confundir uma lacuna de um português com uma expressão correta de quem vem de fora. Também se poderia argumentar que os professores portugueses não têm que ter domínio de outras variantes do português. Mas isso é mais revelador da aptidão dos nossos professores do que da dos nossos alunos.
No Reino Unido, outra capital da língua, os alunos estrangeiros podem responder em qualquer variante do inglês em exames de admissão à universidade, como o HAT ou o CLT. Seria impensável um corretor britânico determinar que o inglês falado por alunos dos EUA ou da Índia é "errado." Cabe aos examinadores terem uma visão global da língua e aplicar bom senso à correção.
O coador linguístico usado pelos corretores portugueses ainda faz menos sentido quando o programa oficial do ensino secundário propõe obras de vários autores brasileiros e africanos para o projeto de leitura. O português brasileiro e africano de Jorge Amado, Clarice Lispector, Cecília Meireles ou Pepetela é oferecido aos alunos, mas censurado pelos corretores.
No Brasil, todos os que fazem o Exame Nacional do Ensino Médio têm que usar a "modalidade escrita formal da língua portuguesa," o que inclui as várias variantes globais do português, de Portugal a África. Todos são bem-vindos, como me disse ao telefone uma funcionária do Ministério da Educação. É o principio inverso à glotofobia praticada por Portugal. No respeito pela globalidade da língua portuguesa e na tecnologia aplicada ao acesso ao ensino superior, Portugal pode aprender com o Brasil.
* Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e Califórnia-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial.