"A extrema-direita estava escondida à espera do seu momento. O 25 de Novembro abriu-lhe o espaço todo"
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"Até me admira terem posto o nome do Bagagem! Está a rir? Eram gajos para isso." Mário Tomé aponta com espanto para a placa de mármore de homenagem aos mortos junto à porta de armas do antigo quartel de Lanceiros 2, na Calçada da Ajuda. Foi por aqui que os comandos de Jaime Neves entraram há 49 anos, já na manhã de 26 de novembro. O assalto ao quartel deixou três mortos: dois comandos e um polícia militar. É considerado um dos momentos chave do confronto a 25 de Novembro. Mário Tomé estava do lado de dentro. Era o segundo comandante desta unidade da Polícia Militar. O agora coronel Mário Tomé recusa a ideia de tentativa golpe à esquerda. "O golpe foi deles", atira. Acabou preso, mas pelo meio ainda houve um bacalhau com batatas.
Foi aqui que passou o 25 de Novembro?
Eu estava aqui a 25 de Novembro, era o segundo-comandante do Regimento da Polícia Militar, que era o Regimento de Lanceiros 2 onde estava a Polícia Militar, depois de ter estado no 7 até praticamente a 11 de março.
Como é que foi esse dia aqui? Não saiu daqui o dia todo, estiveram aqui fechados…
Nós estávamos de prevenção rigorosa às ordens do Presidente da República. Nesse dia eu estava no COPCON [Comando Operacional do Continente] e, quando lá estava, recebe-se a notícia de que os paraquedistas tinham ocupado as bases aéreas. Aquilo pareceu-me um bocado estranho e resolvi imediatamente ir para o Regimento. Aliás, eu disse: "Isto cheira-me a 'golpaça'." Falei com o comandante e chegámos à conclusão de que íamos estar do lado dos paraquedistas, sem saber exatamente o que era. Tivemos um comunicado a apoiar a luta dos paraquedistas, que, aliás, era justíssima. Eles foram tratados de uma forma incrível, inaceitável, pelo Chefe de Estado-Maior que lhes retirou os apoios logísticos. Tinham sido abandonados pelos oficiais. Uma coisa que é a coisa mais grave que se pode fazer militarmente é os oficiais abandonarem a sua tropa. Estava em andamento o golpe deles, claro. Vim para aqui e fizemos o tal comunicado e pronto, ficamos aqui fechados. Depois, durante a noite do dia 25, fomos recebendo telefonemas do Sousa e Castro e de outros camaradas para a gente entregar-se ali na Presidência. E nós dissemos: “Não vamos nada, estamos de prevenção rigorosa.” Estivemos nisto praticamente durante a noite toda.
É a tal troca de telefonemas entre Campos de Andrada e Vasco Lourenço…
Vasco Lourenço, Sousa e Castro… Depois, às 8 e tal da manhã, estava o Campos Andrada, na varanda do primeiro andar, a explicar aquilo que ele pensava que estava a passar e nessa altura é o ataque dos comandos. Eu estava ali também. Começam a rebentar umas granadas, o tiroteio e tal e vou dar com o Albertino Bagagem morto aqui atrás, aqui na parada por trás deste muro. E, nessa altura, vou para o meio da parada mandar parar o fogo. E, nessa altura, também o Ribeiro da Fonseca, que era alferes comandos e que eu conhecia da guerra de Moçambique, estava numa daquelas janelas. E ele lá de cima com o ar arrogante e em cima e eu fui a andar e disse-lhe: "Olha, vai-te foder", e avanço para aqui. Nessa altura está o Jaime Neves com a chaimite a rebentar o portão. Sai da chaimite, vem ter aqui e eu pergunto-lhe: “O que é que se passa, pá?”. E ele: "Ó pá, quem disparou primeiro?" E eu respondo: “Quem mandou cercar a unidade militar por outra unidade militar foi quem disparou primeiro." Aquilo já não havia nada a fazer, não é? E eu, o Campos Andrada e o Cuco Rosa fomos por aqui abaixo, nas calmas para Belém, a pé. Em Belém, almoçámos um bacalhau com batatas, muito bem feito. Era para Presidente e companhia, com aquela malta toda, os atacantes e os atacados... Agora a questão fundamental aqui é: como é que eles conseguem explicar a tese de que havia um golpe contra o Estado ou contra o poder instituído dos “esquerdistas”? Daqui a Belém são 150 metros. Nós aqui tínhamos quase dois mil armados de G3. Eu uma vez, aliás, num debate na RTP com o Vasco Lourenço, perguntei-lhe assim: "Olha lá, então a gente estava a fazer um golpe? Qual era a força que vocês tinham para defender o Presidente da República?” Ficou a olhar para mim, sem resposta. E eu disse-lhe assim: “Tinham lá um sentinela, não era?” Portanto, o golpe foi deles. Foi preparado a partir de Tancos que definiu politicamente isto.
Houve ou não ordem para os paraquedistas saírem?
Eu tenho a minha opinião. Os paraquedistas foram tramados. Para já, estavam já afetados, digamos assim, com o que se passou no 11 de março. Foram usados contra a revolução, contra a própria organização do Estado. Fizeram um assalto, aquilo era um pronunciamento à antiga: eles atacavam o quartel, ocupavam o quartel do Ralis, depois apareciam ao Spínola, o salvador bom. Depois, quando foi da luta dos trabalhadores da Rádio Renascença, foram eles que foram garantir que se punham as bombas para dar cabo da coisa. Portanto, tínhamos um Governo bombista como os bombistas que o apoiavam e com quem ele se entendia bem e o próprio Conselho da Revolução entendeu-se bem com os bombistas. Estavam dispostos a tudo, por quê? Porque não eram capazes de aguentar politicamente o movimento popular que sai do 25 de Abril. Um movimento popular é a única coisa com força transformadora.
Há civis armados na cintura industrial de Lisboa, há vários quartéis que estão ao lado do COPCON…
Quem é que eles eram? É uma treta. Eram meia dúzia de tipos com umas arminhas.
Haveria uma armadilha para tentar forçar a esquerda a sair?
Isso era o que tinham planeado, mas os paraquedistas foram colocados na situação que já descrevi. A partir dai, a gente não se pode esquecer que os soldados já tinham assumido a ação política, acompanhavam o movimento popular e manifestavam-se. Aquilo de que as portas que o 25 de Abril abriu, nunca mais ninguém fecha é mentira. Foi fechada por estes gajos. A esquerda militar não tinha razão para sair para parte nenhuma. A esquerda militar estava a cumprir as suas missões militares nos quartéis, onde tinha de estar. Do meu ponto de vista, estou a falar agora dos oficiais, com o pensamento democrático, apoiava o movimento popular, apoiava a participação dos soldados na ação política. Os quartéis, chamados de esquerda, estavam a fazer aquilo que sempre fizeram.
Há o lamento pelo Otelo não ter sido mais veemente na resposta…
Acho que o Otelo, sabendo o que sabia, que sabia mais que eu, com certeza acho que se portou bem. Fez aquilo que tinha a fazer. Não aceitou um confronto militar.
O confronto militar levava uma guerra civil?
Não. Isso é a atoarda do Mário Soares. Eu pergunto: guerra entre quem? As unidades chamadas revolucionárias eram quatro ou cinco. As outras estavam todas feitas com o travar do movimento popular, impedir que ele se desenvolvesse. Qual era a guerra? Eles tinham os aviões todos. Não havia guerra civil nenhuma e até a UDP caiu um bocado nisso. Não havia guerra civil nenhuma. Eles tinham tudo, tudo, tudo. Toda a força militar era deles.
E não pode ter havido aqui uma instrumentalização feita até com alguma esquerda para dar cabo de outra esquerda?
Essa conversa também não vou nisso. Eu não gosto de ir por aí. É evidente que há sempre quem se aproveite de situações para os seus intentos. Eles também foram dentro. Também foram para Custóias, os do PCP e os que eram afetos à UDP…
Como tem acompanhado esta polémica à volta da celebração do 25 de Novembro no Parlamento?
A celebração do 25 de Novembro só surge com a entrada do Chega no Parlamento. É a extrema-direita a impor a comemoração do 25 de Novembro, que não tem nada para comemorar. O Vasco Lourenço tem razão, estou de acordo com ele. Do meu ponto de vista, há que lamentar o golpe deles e para comemorar o quê? Está bem, eles querem comemorar, deram cabo das possibilidades que estavam a desenrolar-se do ponto de vista político. O confronto político é óbvio que eles quiseram transformar em confronto militar. Essa é que é a questão. Confronto político que é absolutamente natural e é necessário. É evidente que, à esquerda, os interesses populares estavam-se a afirmar com a participação popular e dos soldados nas ruas e a conseguir desenvolvimentos positivos para quem nunca teve nada, para quem sempre foi sempre espezinhado e continua a ser.
A extrema-direita é derrotada também no 25 de Novembro, não?
Sim, a extrema-direita estava escondida e estava à espera do seu momento. O 25 de Novembro abriu-lhe o espaço todo. O grande herói do 25 de Novembro é o Jaime Neves. Ele não participou no 25 de Abril, fingiu que participou. Jaime Neves não cumpriu as missões que lhe estavam distribuídas que era prender os comandantes daqui e dali que era onde estava a força que se podia opor ao Salgueiro Maia. Ele não fez isso, passou a noite nas calmas e depois apareceu a mostrar-se. Aliás, ele tinha dito ao Otelo que se soubesse que era para sair de África, não tinha alinhado. Ele foi obrigado a alinhar, sem alinhar, depois contemporizou, digamos assim, com balanço.
E o PREC acaba mesmo no 25 de Novembro ou acaba antes, em setembro, em Tancos?
Em Tancos, há uma transformação política em que a esquerda militar ficou com a sua capacidade de intervenção diminuída, a sua capacidade de intervenção. A capacidade de intervenção da esquerda militar era fundamentalmente o povo em movimento, o movimento popular e a participação dos soldados. Mas depois havia os oficiais que compatibilizavam com isso ou que apoiavam isso, etc. Isso tudo levou uma machadada grande em Tancos. Mas o movimento continuava muito diminuído, porque, por mais que a gente ache que o movimento era fundamental e foi, tinha o guarda-chuva do MFA e, portanto, a independência do movimento popular - que era grande, era forte - contava muito com o MFA bonzinho, não é? Entretanto, isto reduziu-se bastante, partiu-se tudo. Aliás, o MFA partiu-se e isso teve consequências também no ímpeto revolucionário.
Quando é que sentiu que o golpe estava a ser preparado?
O meu pensamento era mais político do que militar. A participação militar era no apoio ao movimento popular. Podia ser um bocado ingénuo, mas, do meu ponto de vista, a revolução popular tinha de ser assumida pelos soldados e pelo povo, pela malta da reforma agrária. Isso é que era interessante. O resto eram as conspirações de corredor. E soube que eles fizeram uma lista dos malandros a prender. Isso mostra que eles é que foram os golpistas.
E estava na lista?
Claro, então não havia de estar? Se não estivesse é que eu desconfiava de mim próprio. Aquilo foi mesmo uma 'golpaça' urdida com os apoios da CIA, do Carlucci, dos alemães, dos franceses. Eu estava aqui e um dia eu fui convidado pelo embaixador de França para irmos almoçar ao castelo, ao restaurante do Michel, então fomos lá. Ele estava a tentar saber o que é que se andava a urdir. Não se andava a urdir nada, a nossa ação foi sempre clara, foi sempre explícita, não era conspirativa. A conspiração foi para fazer o 25 de Abril dentro do regime, num regime democrático. Não havia conspirações, as conspirações eram deles que quiseram travar isto.