Alberto Martins: "Votar tem uma força especial. Custou muito a muita gente alcançar a possibilidade de votar, honrem-na"
O Voto é a Arma do Povo: as primeiras eleições livres fazem 50 anos e a TSF convida 25 personalidades a falar sobre a importância do voto. Com um simples pedir de palavra, fez abanar todo o regime do Estado Novo. Alberto Martins, antigo deputado e ministro do PS, aponta que votar é "uma exigência cívica"
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E se pedir a palavra fizesse tremer as bases de um regime autoritário, como um forte sismo o faz com a Terra? Foi isso que Alberto Martins foi para o Estado Novo, em 1969: um terramoto. Passados 56 anos desses tempos tumultuosos, a cara e a voz da crise académica em Coimbra considera que os portugueses devem "honrar" quem lutou pela democracia.
"O voto é um bem público. A educação, a saúde. O voto de escolhermos aqueles que nos representam é um bem público. E, portanto, é uma exigência cívica que é fundamental que seja cumprido para melhorarmos a vida de todos e sentirmos que há coisas que são de todos. A democracia é forma de governo e é um sistema de valores e nessa forma de governo está o voto. Para serem cumpridos os grandes valores da liberdade, da igualdade, da solidariedade, do respeito pelos outros e, portanto, no voto condensa-se uma escolha. É uma participação, é uma exigência cívica. Custou muito a muita gente durante muito tempo alcançar a possibilidade de votar, portanto, honrem essa possibilidade, votando", apela Alberto Martins em entrevista à TSF.
E remonta à sua primeira vez, em 1975: "Eu tinha a consciência plena que votar pela primeira vez era um grande momento da história, o culminar de uma luta pela liberdade e pela igualdade em Portugal. Tinha uma força brutal e é por isso que acho que votar tem uma força especial, porque não é o puro ato eletivo, mas é a sequência de lutas imemoriais."
Recuando mais um bocado no tempo, em 1969, Portugal vivia uma situação muito delicada. "Vivíamos num regime de ditadura, Portugal era um país pobre, analfabeto, subdesenvolvido, com censura, polícia política e uma guerra colonial que era o destino de toda aquela geração", descreve.
Mas como é que tudo aconteceu? "Foi uma decisão coletiva. Eu era o presidente da Associação Académica e por isso foi decidido pelos meus colegas que eu iria pedir a palavra se tivesse condições para o fazer. Foi decidido no dia anterior e fui-me deitar preocupado e no dia seguinte lá fui para o edifício das matemáticas. Chegou a comitiva, o chefe de Estado, o ministro da Justiça, o ministro da Educação, o ministro das Obras Públicas, as altas entidades e autoridades militares, civis, polícia política, os professores da universidade. Era um ambiente pesado e eu decidi pedir a palavra em nome dos estudantes da Universidade de Coimbra. Era a voz da Academia. Era a voz e o rosto dos estudantes da Universidade de Coimbra. Bem, foi uma decisão coletiva."
No entanto, a resposta da comitiva liderada por Américo Tomás, então Presidente da República, não agradou aos estudantes.
"Esse pedido da palavra foi respondido: 'Bem, mas agora fala o ministro das Obras Públicas.’ E criou-se uma grande expectativa, falaram dois ministros e de súbito o chefe de Estado saiu de forma desabrida com a PIDE a abrir os caminhos entre os estudantes à cotovelada e com agressões. Enfim, e os estudantes começaram a gritar ‘queremos falar, queremos falar’, num grito de rebeldia e de apoio àquilo que eu tinha feito em nome de todos. E pronto, percorreram as salas do edifício. Depois falaram mais uns colegas meus, o Celso Corceiro, o Barros Moura, o Carlos Batista e acabou. Eles iam ouvindo os nossos discursos porque aconteceu uma circunstância singular: as autoridades tentaram fechar os altifalantes que davam para todo o edifício que estava a ser percorrido pela comitiva do chefe de Estado, mas não conseguiram porque a chave desapareceu, a chave do centro de comunicação desapareceu, e penso que nunca foi encontrada até hoje", conta Alberto Martins entre risos.
Mas nada ficou por aí, porque, nessa mesma noite de 17 de abril, a PIDE entrou em ação e o então presidente da Associação Académica de Coimbra não teve como escapar.
"Foi um momento de grande euforia, mas pelas 00h00 ou 01h00, ao sair da Associação Académica, fui preso por sete ou oito agentes de PIDE que me mostraram uma pistola e levaram-me para o edifício da PIDE, onde estiveram a interrogar toda a noite, mas no dia seguinte, às 12h00, houve uma grande manifestação à porta da PIDE mais docentes estudantes que foram barbaramente espancados. Mas essa movimentação de estudantes mostrou a nossa força, a nossa solidariedade. Libertaram-me, mas passados oito dias, oito estudantes, a direção da Associação Académica, os que tinham falado na sessão, foram suspensos da universidade, que era uma forma eufemística de dizer que estávamos expulsos da universidade", recorda.
Durante o interrogatório, o interesse na PIDE era nas supostas ligações do movimento estudantil aos comunistas, algo que Alberto Martins rejeitou e continua a rejeitar.
"Sobretudo eles queriam saber quem é que estava por trás. Queriam naturalmente as ligações ao Partido Comunista Português, o que não aconteceu, não acontecia, eu nunca pertenci. Foi uma decisão coletiva dos estudantes, mas a pressão era sempre essa", detalha.
Além disso, a luta de Coimbra tinha reforços de peso: "Na altura, a Universidade de Coimbra tinha também uma forte componente, como têm hoje as universidades em geral, mas na altura isso era significativo, 45% dos estudantes da Universidade de Coimbra eram mulheres, que era uma altíssima taxa de feminização, mesmo em termos europeus e foram muito importantes. Homens e mulheres foram importantíssimos na luta de Coimbra."
Depois desses protestos e da greve às aulas, o regime, nesta altura já liderado por Marcelo Caetano, cometeu aquilo que para Alberto Martins foi um primeiro grande erro.
"O ministro da Educação, ao fim de 15 dias dos acontecimentos e da greve às aulas, veio à televisão, televisão única a preto e branco, falou durante longos 16 minutos sobre os acontecimentos que se tinham passado em Coimbra, que foi um momento fantástico para nós. Foi um grande erro político, porque o país passou a saber que a Universidade de Coimbra, os seus estudantes e até os seus professores, estavam em luta, mas terminou dizendo 'a ordem vai ser restabelecida, garanto aos portugueses que a ordem vai ser restabelecida’. Enganou-se, não foi", comenta.
Da greve às aulas, os estudantes passaram para uma greve aos exames, algo que era muito mais arrojado e colocava em causa o futuro de muitos dos alunos da Universidade de Coimbra.
"Decidimos fazer uma grave exames, que foi uma coisa única. 87% dos estudantes da Universidade de Coimbra fizeram grave a exames. A greve exames era um ato não já coletivo como uma greve às aulas, mas era um ato que implicava uma decisão individual. Perder bolsas de estudos, perder o ano, os estudantes das colónias serem chamados e deixarem de ter bolsas de estudo, famílias, nalguns casos, que não estavam de acordo com as decisões de fazer a greve. Foi um momento de grande solidariedade, grande combate, combatividade política. Um grande número de professores aderiram à luta dos estudantes, a própria cidade de Coimbra. Nós fizemos manifestações da cidade a mostrar que defendíamos a paz contra a guerra em que a universidade se tinha transformado, cercada por cães polícias, polícia de choque, polícia com carros com arame farpado, a percorrer os passeios durante o período da greve e distribuindo flores e balões à população. Foi um momento muito forte", relata Alberto Martins.
O cenário perto da universidade era de forte repressão: "A polícia a fazer filtragens para levar os estudantes que não se solidarizavam - a que nós chamamos os traidores da Academia - a fazer exame e foi um período de grande tensão. Nos primeiros dias, cerca de cem estudantes foram presos pela polícia e pela Guarda Republicana e foram levados imediatamente a julgamento. Essa medida não surtiu efeito porque só podiam ser presas se fossem apanhados em flagrante delito e os estudantes tinham grande capacidade de se de fugirem ao flagrante delito."
"Naturalmente, o regime da ditadura usou depois outro expediente. Mandou para Coimbra a Polícia Judiciária fazer o papel de PIDE e acusaram-nos do crime de sedição, que é um crime que (...) já não existe no nosso Código Penal, que é um crime de tumulto público com violência e com perturbação da ordem pública. Eu próprio e outros fomos presos pela Polícia Judiciária (...) E cerca de 50 estudantes foram incorporados compulsivamente no Exército por castigo, o que foi um erro para a ditadura, porque o Exército era o espelho da pátria, das virtudes mais nobres da nação e, afinal, estava-se a tornar numa colónia disciplinar contra insurretos que eles queriam fazer passar por traidores", explica.
Alberto Martins foi um desses estudantes a ser compulsivamente integrado no Exército e aponta que esse foi mais um erro do regime: "Foi uma experiência forte, significativa, porque mesmo quando chegamos a Mafra, muitos dos oficiais do quadro, alguns dos quais nossos colegas e até nossos amigos do liceu, interrogaram os comandantes militares (...) Nós tínhamos na altura uma grande consciência política. Fomos também um instrumento de elementos de discussão, de diálogo político, de partilha de consciência cívica. Hoje é reconhecido o golpe militar que dá origem à revolução social do 25 de Abril, é feito pelas forças armadas, feita pelos capitães, portanto, pelos jovens das Forças Armadas que têm consciência política a partir de uma guerra que não é possível ganhar pela via militar, mas também pela consciência política do esclarecimento das ideias, dos valores, do companheirismo, das relações de cordialidade e de amizade que se estabeleceu entre todos nós. Portanto, foi um erro grande para a ditadura também essa incorporação."
Amainada a luta académica, Alberto Martins salta para a queda do Estado Novo e o próprio chegou a temer que fosse mais uma derrota.
"Um amigo meu dos tempos de Coimbra veio-me dizer que iria haver um golpe militar, um golpe militar dos bons e deu umas senhas, o E Depois do Adeus e a Grândola, Vila Morena. Eu nunca ouvi-a rádio, estava na minha casa - já era casado, tinha um filho na altura com um ano - e fui ouvir rádio. Não localizei as senhas, fui-me deitar e pensei ‘muito bem, mais uma vez a democracia, a esquerda, os democratas, as lutas antifascistas, mais uma vez fomos derrotados’. A derrota acompanhou muitas vezes a resistência. E às 06h00 ou 07h00 recebi um telefonema de um amigo meu que disse: ‘Parece que há uma movimentação militar. O que é que será isto, será o Kaúlza [de Arriaga]?’ Eu disse: ‘Não, não. Este movimento é dos bons.’ E lá lhe dei a conta, porque eu não tinha dito a ninguém, nem sequer à minha mulher, porque na altura havia coisas que não se podiam dizer a ninguém, para nos defendermos a nós e para defender as outras pessoas.
Em liberdade, Alberto Martins fundou o Movimento de Esquerda Socialista (MES), pelo qual foi candidato não eleito à Assembleia Constituinte, e só nos anos 1980, pela mão de Maria de Lurdes Pintasilgo, chegou à Assembleia da República, como independente nas listas do PS. Aderiu ao partido menos de dois anos depois e esteve 25 anos no Parlamento, tendo sido líder da bancada em mais do que uma ocasião. Foi também ministro da Reforma do Estado e da Administração Pública no segundo Governo de António Guterres e ministro da Justiça, no segundo Governo de José Sócrates.
Nada disto teria acontecido sem aquele momento em 1969: "Até admito que se não fossem as lutas de Coimbra, teria uma carreira profissional, certamente como um cidadão comum. Não é que na política haja cidadãos incomuns, mas pronto é uma responsabilidade específica da ação coletiva em representação coletiva. Não imaginava e provavelmente não a teria se não fosse o pedir a palavra em 1969. Mudou a minha vida, como provavelmente mudou a vida de muitos dos estudantes de Coimbra."
Depois de uma revolução quase sem sangue, Portugal está há 50 anos a utilizar a arma mais forte que o povo tem: o voto. A TSF convida 25 personalidades a falarem sobre a importância da participação dos eleitores. Para ouvir todos os dias na antena da TSF de manhã, à tarde e à noite, e a qualquer hora em tsf.pt