As marcas da resistência de Mário Soares: tinha "instinto de controlar o ambiente" e era capaz de "antecipar acontecimentos"
A antiga assessora do ex-chefe de Estado recorda, na TSF, que Mário Soares "ficava furioso" com fugas de informação vindas de Belém, por considerar que estas traduziam "uma falta de confiança"
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O antigo Presidente da República Mário Soares foi uma das principais figuras da resistência ao regime do Estado Novo e este foi um papel que deixou marcas na sua personalidade: desde esses tempos, passou a ter "uma necessidade instintiva de controlar o ambiente".
Numa altura em que se aproxima o centenário do nascimento de Mário Soares, a 7 de dezembro, a antiga assessora do ex-chefe de Estado narra a história de um homem "exigente". Contudo, não esquece que, a par da "coragem e a determinação" - tão necessárias para assumir a luta contra uma ditadura que durou quase meio século -, o socialista estava "habituado, desde a oposição, a perceber se havia algum pito escondido ou que estivesse num sítio onde podia caçá-lo".
"Ele tinha um olhar que havia pessoas que diziam: 'O Presidente parece que não está a prestar atenção.' E eu dizia: 'Não, isso é uma coisa que vem da oposição. Ele tem necessidade de, instintivamente, controlar o ambiente onde está e ver, com uma vista de olhos rápida, mas estava a ouvir tudo aquilo que era dito'", explica Estrela Serrano, em declarações à TSF.
Primeiro-ministro de três Governos constitucionais (1976/1978, 1978 e 1983/1985) e chefe de Estado entre 1986 e 1996, esta hipervigilância de Mário Soares, descrita pela ex-assessora, dotou-o de "uma capacidade de antecipar e prever acontecimentos espantosa".
O mesmo rigor era sentido na relação do cofundador do PS com os media, também adjetivada como "muito intensa". Priorizava sobretudo a imprensa escrita, ao passo que "ouvia pouco rádio e via pouca televisão": "Nesse aspeto, era um homem antigo."
"Queria saber tudo o que se dizia, o que é o país menos ligado à imprensa escrita dizia, porque ele nunca saía de casa de manhã sem ter lido jornais nacionais e o Le Monde e outros [jornais] franceses, porque era a segunda língua dele", aponta Estrela Serrano.
Já quando assumiu a presidência, em 1986, muito depois do fim do regime ditatorial português, Soares "ficava furioso" com fugas de informação vindas de Belém.
"Quando eram fugas de informação vindas de Belém, bom, ele ficava... às tantas, eu era sempre a pessoa, supostamente, pelo menos para ele. Quando havia fugas, [achava] que era eu", recorda a ex-assessora, que acrescenta que um dia sentiu-se "injustiçada" e, por isso, decidiu falar.
"Eu disse-lhe: 'Ó senhor Presidente, se desconfia de mim, eu vou-me embora, não aceito que desconfie. Se eu lhe digo que não, tudo aquilo que for da sua parte confidencial, eu não comunico. Eu não digo.' Bom, ele olhou para mim com um ar - eu tinha a impressão de que ele tinha um ar assim de vez em quando - e não falou mais no assunto e, então, aquilo passou. Passou um tempo e ele um dia chamou-me, como era quase todos os dias, e, então, antes de eu ir embora do gabinete, disse-me assim: 'Bem, você tinha razão. Já descobri como é que foi isso da fuga.' Porque era uma fuga que, para ele, tinha sido das mais chatas", conta.
Para o também ex-líder do PS, estas situações eram "uma falta de confiança".
O antigo chefe de Estado nasceu a 7 de dezembro de 1924, uma data que será assinalada esta sexta-feira (6 de dezembro) com uma sessão solene na Assembleia da República, além de um vasto programa que irá estender-se até ao final de 2025, com várias iniciativas espalhadas pelo país. Na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, será feita este sábado uma cerimónia de apresentação do III volume da Coleção Obras de Mário Soares - "Escritos da Resistência".