As "palavras duras" de Rita Júdice: vítimas "devem ocupar lugar cimeiro" e criminalidade financeira "ameaça Estado"
A responsável pela pasta da Justiça sublinha que a violência doméstica não é apenas uma questão familiar. Antes, "é um crime - e dos mais graves - que precisa de ser denunciado, investigado, reprimido e, acima de tudo, evitado"
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A ministra da Justiça, que discursou pela primeira vez na abertura do ano judicial, lembrou o nome de Alcinda Cruz, uma mulher de 46 anos, morta à facada pelo marido, em frente aos dois filhos menores. Rita Júdice defendeu por isso que as vítimas "devem ocupar lugar cimeiro no sistema judicial" e avisou que a criminalidade económico-financeira é uma "ameaça ao desenvolvimento do Estado".
A governante começou por reconhecer que nada do que for dito nesta cerimónia "vai salvar a vida desta mulher, que tinha dois filhos para educar" e questionou o que é que a Justiça tem a dizer aos dois menores. Considera, contudo, que ainda há algo a dizer ao resto da população e, sobretudo, a outras vítimas.
"As palavras bonitas sobre a Justiça já foram todas inventadas e ditas. Encaremos as palavras duras", ditou.
Sublinhou que a violência doméstica não é apenas uma questão familiar. Antes,"é um crime - e dos mais graves - que precisa de ser denunciado, investigado, reprimido e, acima de tudo, evitado".
Afirma que Alcinda Cruz é a "grande ausência e silêncio" na cerimónia desta segunda-feira e aponta que na expressão violência doméstica "há sempre uma referência em falta, que é crime. Crime de violência doméstica". A governante nota ainda que as "palavras são capazes de moldar comportamentos" e defende que as "vítimas devem ocupar um lugar cimeiro no sistema judicial", sem se referir apenas às vítimas de violência doméstica.
Sobre o crime económico e financeiro, afirma que este tipo de criminalidade deixa "vidas desfeitas" e constitui uma "ameaça ao desenvolvimento do Estado", já que lhe tira "direta e indiretamente" recursos, comprometendo a sua credibilidade.
A ministra da Justiça fez ainda referência à vigília silenciosa convocada pelos oficiais de justiça, que paralelamente aos discursos no Supremo Tribunal da Justiça. Apesar de considerar que esta é uma "forma legítima de protesto", sublinha que estes profissionais já tiveram "provas de boa-fé do Governo" acerca do seu empenho para resolver problemas da classe. Aponta desde logo o aumento o suplemento de recuperação, a revisão do estatuto profissional em curso e o recrutamento de quase 600 novos profissionais, em seis meses.
Argumentou igualmente que a reforma do setor não se faz de “grandiosos planos estratégicos”, mas sim resolvendo os problemas "um a um” e declarou-se “uma aliada” dos funcionários judiciais, novamente em protesto esta segunda-feira.
“Eu sei o que fazer para que a Reforma da Justiça não tenha resultados: é fazer anúncios de grandiosos ‘planos estratégicos’. E também sei o que fazer para que Justiça seja reformada: resolver os problemas um a um, mesmo que não sejam imediatamente percetíveis para o cidadão”, disse.
À porta do STJ, como anunciado, centenas de funcionários judiciais manifestam-se em silêncio contra a proposta da tutela para revisão da carreira e valorização salarial, uma manifestação que não foi esquecida no discurso da ministra, que a considerou “uma forma democrática e legítima de protesto”, lembrando, no entanto, que “já tiveram provas da determinação e da boa-fé do Governo em resolver os problemas da classe nos últimos meses”, nomeadamente com um aumento de um suplemento salarial e o recrutamento de centenas de profissionais.
“Os funcionários judiciais sabem que têm na Ministra da Justiça uma aliada. Mas uma aliada não é alguém que distribui dinheiro público na proporção do ruído ou do número de notícias. É alguém que conhece o valor do seu trabalho, que move montanhas para que os Tribunais tenham computadores, sistemas informáticos, ar condicionado, segurança, elevadores, rampas de acesso, salas onde não chova”, disse.
Rita Alarcão Júdice fez ainda um primeiro balanço da tramitação eletrónica do processo penal, que entrou em vigor há um mês e desmaterializou procedimentos, tendo sido feitas 22 mil notificações eletrónicas e poupados 238 dias de trabalho a oficiais de justiça. Elogiando a transição, afirmou que isto "tem um grande impacto nas secretarias dos tribunais". Além do fim do desperdício do papel, salienta o "tempo que se poupa", permitindo maior celeridade nos processos judiciais.
Apontou ainda as medidas tomadas para reforçar o ingresso na magistratura de mais candidatos, como a criação de um novo polo de formação do Centro de Estudos Judiciários em Vila do Conde, alterações para permitir o acesso mais cedo ao STJ por parte dos juízes e assim rejuvenescer os seus quadros, um projeto para regular as assessorias nos tribunais, a revisão da tabela de honorários dos advogados oficiosos, em fase de conclusão e modernização tecnológica no âmbito do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR).
“A política de justiça é definida pelo Governo. A gestão, a administração, os investimentos, a afetação de recursos, as prioridades legislativas e orçamentais cabem a quem foi eleito para governar, sujeitando-se ao debate, à discórdia, à negociação e ao escrutínio final dos eleitores. O Ministério da Justiça exerce as suas competências, toma as decisões que lhe parecem mais adequadas e sujeita-se ao escrutínio técnico e político. É uma das regras do jogo democrático: decisores políticos gerem os recursos públicos e são avaliados, politicamente, pelo mérito das suas decisões. Aos tribunais o que é da aplicação da Justiça, ao Governo o que é da Política de Justiça”, disse.