Catarina Martins à TSF. “União Europeia tem dois pesos e duas medidas nos vários conflitos”
A eleita pelo BE considera que “presidência húngara da UE será um desafio gigantesco” e alerta que a “democracia não está garantida”
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A ex-coordenadora do Bloco de Esquerda, eleita eurodeputada em 2024, Catarina Martins defende que “a paz, o clima e os direitos” sejam tópicos prioritários na agenda política dos próximos cinco anos na UE.
Em entrevista à TSF, Catarina Martins considera que a União Europeia precisa de "um discurso coerente sobre a paz e de credibilidade internacional", destacando a situação na Palestina como um exemplo dessa incoerência. Catarina Martins alerta também para os “perigos” do Pacto das Migrações, que "viola direitos humanos e trata os migrantes como criminosos".
A propósito do acordo para os cargos de topo na UE, afirma que "a política de dois pesos e duas medidas, exemplificada pela atuação de Ursula von der Leyen”, não tem o seu apoio, afastando-se da candidata à presidente da Comissão Europeia.
Deputada Catarina Martins, quais são as prioridades políticas para os próximos cinco anos, na sua perspectiva?
Eu não serei muito original se disser que há três prioridades que me parecem óbvias. Na União Europeia, a prioridade da paz, a prioridade ao clima e a prioridade aos direitos. Os direitos abrangem tanto as nossas liberdades e direitos individuais quanto coletivos, fundamentais para a democracia, igualdade e liberdade. Sei que muitos eurodeputados poderão dizer isto, mas as diferenças surgem na forma de alcançar esses objetivos.
Como é que na perspectiva do Bloco se pode chegar à paz. De facto este é um tema transversal nas seis entrevistas. Mas, as soluções que se propõem são em alguns casos divergentes. Como é que o Bloco vê, a partir do Parlamento Europeu, Iniciativas como a que foi levada a cabo pelo primeiro-ministro húngaro Viktor Orban, de ir a Kiev e a Moscovo, depois de assumir a presidência rotativa da União Europeia?
A presidência húngara será um desafio gigantesco, com prioridades que se afastam de muitas outras. A Hungria é um país que não cumpre o Estado de Direito, enfrentando problemas e sanções da União Europeia. A democracia não está garantida e o presidente húngaro, de um partido de extrema direita, é agressivo nos direitos e liberdades individuais, comprometendo a própria democracia. Quem me dera que a presidência húngara construa a paz, mas temo que possa ser uma paz imposta, com perda territorial e de soberania para a Ucrânia, resultando numa paz podre. Precisamos de um caminho para a paz que respeite os povos, as democracias e a autodeterminação. A União Europeia deve credibilizar-se internacionalmente. Temos uma posição forte e consensual sobre a Ucrânia, condenando a invasão russa e defendendo a autodeterminação da Ucrânia. Contudo, a Europa não está a ser levada a sério no mundo, especialmente em relação à Palestina, onde há um genocídio a ocorrer em Gaza, financiado pela União Europeia através do seu acordo com Israel. A situação em Gaza é inimaginável e a inação da União Europeia compromete a sua credibilidade como agente de paz. Para construir a paz na Europa, a União Europeia precisa de um discurso sério e coerente sobre a paz, para ser levada a sério pelo mundo.
Então, há um problema de falta de coerência na mensagem da União Europeia em relação à paz?
Sim, há um duplo critério, sendo Israel o exemplo máximo. Estamos a apoiar com armas e dinheiro o genocídio em Gaza, o que é insustentável. Há também problemas de estratégia. A União Europeia está a investir mais em defesa, retirando fundos de outros projetos, financiando a indústria de armamento, o que não tem relação com a segurança da Ucrânia, mas sim com a prosperidade das indústrias de armamento. Precisamos de investir mais na diplomacia, no multilateralismo e em projetos de prosperidade que tragam esperança ao futuro, em vez de medo. A União Europeia deve focar-se mais em construir a paz através de investimentos e projetos diplomáticos, não através de políticas que aumentam as tensões.
Falou na questão dos direitos. Pode concretizar? Que capítulos é que cabem dentro desse dossier tão vasto como é que o dos direitos?
Os direitos são vastos, abrangendo liberdades individuais, independentemente da origem, cor da pele ou orientação sexual, e direitos sociais, como acesso à saúde, educação e trabalho. A extrema-direita está a crescer, atacando serviços públicos e a capacidade de investimento em setores estratégicos, enfraquecendo os Estados. Em Portugal, a saúde preocupa as pessoas, mas a extrema-direita, sem um projeto económico diferente, agrava a divisão social através do ódio. O papel da esquerda é unir estas lutas, promovendo igualdade e direitos. Por exemplo, o serviço doméstico é mal pago e sem direitos, afetando principalmente mulheres migrantes. Combater a xenofobia e ter uma agenda feminista e laboral cria mais igualdade. O papel da esquerda é perceber onde estas lutas se cruzam, criando união e respeito pelo trabalho e direitos.
Teme que esses direitos possam ser postos em causa no Parlamento Europeu com o crescimento da extrema-direita?
Sim, há riscos. O direito ao aborto, direitos LGBT e direitos dos migrantes estão em perigo. O Pacto das Migrações e movimentos de ódio colocam os mais vulneráveis em risco. Questões laborais, como o fim dos estágios não remunerados e o direito a desligar, precisam de avançar, e a extrema-direita nunca protegerá os trabalhadores. A esquerda deve fazer alianças além do seu grupo para evitar recuos e promover avanços nos direitos, combatendo a desigualdade de género e rendimentos.
Quando diz fazer alianças, até onde admite ir? Estabelece linhas vermelhas?
As alianças podem variar conforme o tema. Não haverá alianças com discursos xenófobos, de humilhação das mulheres ou racistas. Mas em outras matérias, como direitos das mulheres, podem ser possíveis alianças vastas. Já votei ao lado deputadas do PSD em questões de direitos das mulheres, sem deixar de ser oposição.
Falou do Pacto para as Migrações. Alguns grupos políticos querem reabrir esse dossiê. Como é que o Bloco de Esquerda vê a questão do Pacto para as Migrações?
O Pacto das Migrações tem perigos significativos. Ele impede que algumas pessoas façam pedidos de asilo, mesmo quando têm direito, e permite a detenção de crianças. A externalização de fronteiras paga a países terceiros, muitas vezes ditaduras, para gerir a segurança, o que já se provou ser perigoso. O Pacto não pode ficar como está. Qualquer partido sério sobre o direito internacional deve reconhecer que este pacto fará os Estados-Membros incumprirem tratados internacionais.
Teme que seja mais difícil fazer acordos políticos na próxima legislatura com o crescimento da extrema-direita?
Colocar os migrantes como objeto de ódio é um projeto económico da extrema-direita para maximizar a exploração dos trabalhadores. As migrações sempre existiram e continuarão a existir. A União Europeia deve escolher entre ter canais seguros para migração ou criar condições para trabalho escravo. O Pacto das Migrações trata os migrantes como criminosos, o que é inaceitável para um país como Portugal, com uma longa história de emigração.