Criminalizar discurso político? "Por abjeto que seja, é muito difícil deixar de ter repercussões na liberdade de expressão"
A morte de Odair Moniz e as afirmações do Chega subiram a debate n'O Princípio da Incerteza. Pacheco Pereira considera que a criminalização do discurso político traria repercussões ao nível da liberdade de expressão, Alexandra Leitão entende que "foi passada uma nova barreira" e Miguel Macedo fala no cumprimento da lei
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Pacheco Pereira considera que, "por muito abjeto que seja", o discurso político não deve ser criminalizado. No programa O Princípio da Incerteza, da TSF e CNN Portugal, o historiador comentou as declarações do presidente e do líder da bancada parlamentar do Chega relativamente ao caso de Odair Moniz, o homem baleado pela PSP na Cova da Moura.
Na semana passada, André Ventura e Pedro Pinto disseram que se a polícia "atirasse mais vezes a matar", o país "ficaria melhor". O social-democrata Pacheco Pereira condena a afirmação, mas entende que a criminalização do discurso político traria repercussões ao nível da liberdade de expressão.
"Criminalização do discurso político, por abjeto que seja – e eu acho que é abjeto, não tenho nenhuma dúvida sobre isso -, é muito difícil deixar de ter repercussões na liberdade de expressão, porque vão aparecer pessoas a dizer que, numa manifestação em que se mostram cartazes que dizem ‘morte aos senhorios’ ou ‘morte à bófia’, é exatamente da mesma natureza do que disse o deputado do Chega. E num certo sentido é, e é por isso que, de facto, em matéria de liberdade de expressão, eu sou americano", disse o social-democrata.
Já Alexandra Leitão não tem dúvidas de que o risco de "incitamento ao ódio" foi "pisado". A líder da bancada parlamentar do PS diz que as expressões usadas são motivo para ação judicial, até porque, mesmo que a liberdade de expressão seja um direito fundamental, existe o primado da lei.
"Acho que se passou uma nova barreira. Nesta matéria da liberdade de expressão, ou daquilo a que se tem invocado a liberdade de expressão, temos andado numa rampa deslizante há muito tempo", considera, dando o "bom exemplo" dos Estados Unidos. "A situação a que se chegou hoje nos Estados Unidos é deveras preocupante e essa rampa deslizante tem exatamente a ver com hoje aceitarmos um dichote, amanhã aceitarmos uma misoginia, depois aceitarmos um racismo, depois aceitarmos uma xenofobia, depois aceitarmos uma pura injúria, e a certa altura estamos a aceitar que se diga que são bandidos quem nem se sabe se é ou não, ou que se condecore uma pessoa que matou sem se saber mais nada", afirma.
Para o antigo ministro do PSD Miguel Macedo, se o que foi dito pelos líderes do Chega for, de facto, uma violação da lei, então deverão ser punidos. "Nós temos limites, quais são os limites em Portugal? São aqueles que estão na lei, é tão simples quanto isso. Se aquilo que foi declarado preenche algum dos tipos legais de crime – se estivermos a falar em crime - que estão previstos no código penal, evidentemente isso constitui um limite, porque a lei aprovada na Assembleia da República entende que o exercício da liberdade de expressão ofendeu um direito que tem a importância de requerer proteção criminal", explica, acrescentando que "trata-se de cumprir a lei portuguesa".
Sobre a forma como a PSP tem lidado em termos de comunicação com a morte de Odair Moniz, Pacheco Pereira sublinha que a posição da polícia está cheia de contradições.
"Não sou cego em relação às contradições e aos factos que, apesar de tudo, a comunicação social com alguma solidez tem referido. Há, de facto, um conjunto de contradições. Pode haver essas contradições todas e, no fundo, não haver injustiça naquilo que aconteceu. Injustiça há sempre, porque não se condena à pena de morte ninguém naquelas circunstâncias, mas pode o polícia não ter a responsabilidade que lhe atribuímos. Mas que há contradições, há. E essas contradições enfraquecem a posição da polícia e nós necessitávamos, num acontecimento deste género, que a posição da polícia fosse inteiramente sólida", assinala.
Por seu lado, a líder parlamentar do PS, Alexandra Leitão, entende que as contradições das forças de segurança minam a confiança dos cidadãos.
"Eu acho que a circunstância de, durante esta semana, terem aparecido versões contraditórias de dentro da polícia e até contraditórias entre duas forças policiais, Polícia Judiciária e Polícia de Segurança Pública, obviamente não contribui para aquilo que é necessário haver, que é confiança e segurança, não haver alarme público da parte dos cidadãos relativamente à atuação da polícia e obviamente que houve contradições. A meu ver, não ajuda a uma visão que desejavelmente todos nós devemos ter da atuação policial", refere.
O ex-ministro da administração interna Miguel Macedo critica aquilo que diz ser uma "péssima metodologia" no modo como a polícia comunica com a população, muitas vezes transmitindo informação com base no que colocam num auto de ocorrência.
"O procedimento para a comunicação é que do meu ponto de vista é errado e eu pensei que já tinha sido corrigido. Pelos vistos, não foi. O que a Polícia de Segurança Pública faz - e não foram poucas as vezes que foram chamados à atenção para isto - é pegar no auto da ocorrência e, com base nele, faz o comunicado público. O problema é que o auto da ocorrência é feito logo que possível, portanto, muito a quente, e nestas situações mais intensas não são poucas as vezes em que nós, na nossa vida normal quotidiana, num pequeno acidente de automóvel ou do que quer que seja, temos uma perceção diferente no momento em que aquilo ocorre daquela perceção que vamos ter uma horas depois, um dia ou dois ou três. Não tem mal fazer fé no que lá está, mas é preciso verificar se o que lá está corresponde efetivamente àquilo que aconteceu nas suas múltiplas dimensões", atira.
