Diálogo com a direita democrática? “A esquerda não pode cometer o pecado da arrogância”
O candidato do Livre por Lisboa, em entrevista à TSF e ao Diário de Notícias, admite fazer "uma análise" caso não consiga ter um grupo parlamentar e responde sobre uma eventual candidatura ao Parlamento Europeu: “Não excluo, não incluo.”
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Rui Tavares, fundador e deputado eleito pelo Livre, historiador, é o primeiro convidado desta série de entrevistas de TSF/DN, rumo às legislativas de 10 de março.
Disse que já conversou sobre cenários depois das eleições de 10 de março com Pedro Nuno Santos e Mariana Mortágua. Já conseguiu perceber se eles alinham na sua proposta de um entendimento alargado e por escrito?
Tivemos conversas casuais, conversas que não foram aprofundadas do ponto de vista político e que não são o tipo de conversas que é necessário ter para formar um entendimento do governo, aquelas que o Livre defende que deveriam ser mantidas.
Mas dão indícios?
Eu acho que os indícios estão à vista de toda a gente, que quer analisar o que está a passar, inclusive os debates eleitorais, que é que à esquerda existe uma congruência entre programas. Nem toda a gente concorda em tudo, nem tudo se poderá fazer a não ser que um impusesse a sua vontade aos outros, mas existe um aspeto programático. Um cidadão atento que analisa os programas e que veja os debates, consegue perceber que há um certo alinhamento em políticas para o país. Alinhamento numa política de reindustrialização do país, por exemplo, alinhamento em que é preciso acorrer à emergência social que foi deixado ao abandono durante os últimos anos, com os efeitos que estamos a ver, alinhamento em que é preciso garantir harmonia social e laboral na saúde, na educação, também com as forças de segurança e, em outros aspetos, os tribunais e os funcionários judiciais, por exemplo, os bolsas de investigação científica. Portanto, o primeiro ano tem de ser passado a garantir que temos essa harmonia social e laboral para depois nos podermos avançar naquilo que o país pode ser. E quem olha para o outro lado do aspeto político, ou para os outros dois lados, digamos assim, para a direita democrática e para a extrema-direita, o que vê é uma total contradição nos termos, porque nós temos um partido a querer gastar 12 mil milhões de euros quando o outro quer receber menos 9 mil milhões de euros, quando o outro quer, não sabe muito bem o quê, e vemos ainda por cima que, pela sua correlação de forças, o que pode acontecer, já não é bem a diferença entre uma geringonça e uma barafunda. À esquerda terá de ser melhor do que uma geringonça, terá de ser um sistema que funciona. Mas à direita temos pior do que uma barafunda, teríamos uma espécie de mostrengo bicéfalo com uma cabeça a querer devorar a outra e a Iniciativa liberal ali, abalroada, um bocadinho no meio como um marinheiro no ombro do Adamastor. Portanto, quem olha para isto vê que a esquerda, se quiser, se tiver maturidade para isso, pode construir um programa de governação. Deve dizê-lo tão mais cedo quanto possível nestas eleições, porque um, à esquerda está abaixo das sondagens, e é preciso reconhecê-lo, os cidadãos precisam de perceber que há essa proposta política, que é uma proposta política de estabilidade e de futuro, de progresso, de ecologia. E, à direita, nós estamos à beira de um abismo que seria muito sério para a nossa democracia, nós até devemos dar tempo à direita para que a direita democrática possa resolver o problema.
Nestas conversas informais que já teve, não incluiu o Paulo Raimundo, o PCP, nem o PAN, alguma razão para isso acontecer?
Não, nenhuma razão para isso acontecer. Acontece que, como são conversas informais, dependem da casualidade dos encontros que temos e também devo deixar as expectativas, ao nível real que elas têm, quer dizer, eu falo com o Pedro Nuno Santos de política, mas também falo de hóquei em patins infantil. Acho que temos todos que nos sentar à mesa e temos todos, de forma multilateral e multipartidária como temos defendido, de falar do futuro do país.
Para o Livre alinhar nesse entendimento quais são os dois ou três aspetos concretos absolutamente imprescindíveis, que constem num programa de governo?
Bem, vamos começar por aquilo que é para nós impossível não constar. Nós temos um compromisso com o projeto europeu e, portanto, o projeto europeu que foi deixado de fora da geringonça tem que estar em termos que respeitem a identidade de toda a gente.
Isso não afasta logo o Bloco e o PCP, sobretudo?
Não, porque eu creio que podemos ter sobre o projeto europeu, apesar das nossas diferenças, um entendimento de que ele deve ser mais democrático e que ele deve ser mais social, que ele deve ser mais ambiental e que Portugal deve ter um papel liderante. Um aspeto, pelo menos para parcelar disto parece mais difícil para o PS do que para os outros, que é o Livre vai pôr em cima da mesa o reconhecimento à independência da Palestina, não esperando Portugal, porque toda a gente se decida para poder avançar, mas participando de Portugal nos esforços de alguns países europeus, entre os quais a Espanha e a Bélgica parecem ser os mais avançados, para liderar o reconhecimento da Palestina como Estado independente, mesmo que a União Europeia não venha toda atrás.
Mas fazia algum espécie de sentido, o Livre não ir para o Governo porque o PS não reconhece a independência da Palestina?
O que não faz sentido é os partidos imporem à partida quais é que são as suas, digamos, o que é que faria abortar negociações. Nós vamos pôr em cima da mesa e achamos que é uma exigência, porque não podemos andar sempre a dizer que somos pela solução dos Estados e só reconhecer um. Mas posso também dizer que do lado do que podemos chamar de linhas verdes, há todo um elemento de garantir que estamos em condições de ter a tal harmonia social e laboral na saúde, na educação, nos outros setores, onde esse é absolutamente essencial, e em que temos e perguntavam-me, acerca do que é imprescindível. Eu creio que é imprescindível fazer, neste ano dos 50 anos do 25 de abril, um debate sobre o que eu diria o futuro dos 3 D’s, o futuro do desenvolvimento do país, abrir isso como grande debate cidadão. Eu propus a António Costa há 2 anos, António Costa chutou para canto, eu acho que não é possível adiar isso. O grau de exigência das pessoas está maior e nós temos de corresponder. Isso deve incluir questões que têm a ver com responsabilização, transparência, integridade, ética no exercício do poder em Portugal, não só do poder político, do poder judicial também, ver onde é que estão os elementos da nossa democracia, que não estão a funcionar bem e que nós temos de conseguir concertar. Por exemplo, os votos desperdiçados no interior do país, temos de conseguir falar acerca da criação de um circo nacional de compensação e aí já estamos a ir para um lado, que eu acho que a esquerda, por muito que tenha um programa do governo, não pode esquecer: é que há elementos que nós só podemos, de facto, melhorar e elevar na nossa democracia e incluirmos todos os partidos democráticos. Nós temos de falar para o Centro Democrático, para a Direita Democrática, até para ajudar a Direita Democrática.
Está a falar no PSD e na Iniciativa Liberal…
Exatamente, sim, e no CDS, que vai regressar ao Parlamento.
Há aqueles acordos que são indispensáveis, os dois terços, portanto, é uma necessidade constitucional, é por isso que acha que a esquerda, que o Livre integra, também deve falar com o centro-direita?
Sim, a esquerda não pode cometer o pecado da arrogância e deve perceber que há aqui coisas que têm a ver com, por exemplo, deste financiamento partidário, até o que se gasta em campanhas eleitorais, que não faz sentido hoje em dia e que pode ser mudado de maneira a que tínhamos, por exemplo, um sistema como existe na Alemanha, de haver fundações políticas que têm centros de estudos e o dinheiro que é devolvido das intervenções de campanha vai para financiar o estudo do país, da realidade em que estamos. Ou seja, se nós, nesses 50 anos do 25 de abril, os cidadãos virem, que nós estamos a fazer um esforço por elevar a qualidade da política, acho que podemos ter alguma esperança de que assim nós consigamos identificar, isolar e acantonar a extrema-direita.
Se esse centro de direita, se nomeadamente o PSD, depois se vencer, se entender com o Chega, esse diálogo da esquerda com o centro-direita, ainda é possível, quando já lá está a extrema-direita?
Não, como só haver um entendimento entre uma direita que ficará mais radicalizada e a extrema-direita, o país entra em um período novo da sua história democrática, não sabemos a que é que vai dar. É muito preocupante para quem viu, para quem vai ler o DN, de há 100 anos, e ver o fim da Primeira República, há muitos elementos semelhantes, a polarização vai aumentar, o fosso vai cavar centras pessoas, podemos passar, vamos quase certamente, passar por aquilo que passaram Estados Unidos, Brasil, ou na pior das hipóteses, Hungria. Nós sabemos que a extrema-direita tem um projeto de poder, passa pelas forças de segurança, passa pela cooptação dos tribunais e do Ministério Público, passa pela perseguição aos outros partidos e às minorias, também muito claramente, mesmo que o tentem disfarçar em campanha eleitoral. Se o centro de direita em Portugal for tão ingénuo que pense, que aquilo que nunca resultou em lugar nenhum do mundo, que é levar a extrema-direita para o poder e achar que dominam a extrema-direita, nunca aconteceu, se o centro de direita em Portugal fizer isso, vai ser a primeira vítima. Quando eu falava do monstro de duas cabeças, ninguém pensa que vai ser o Luís Montenegro a devorar a de André Ventura, vai ser exatamente o contrário, e passado pouco tempo, aquilo que aconteceu ao CDS pode estar a acontecer ao PSD. Isto é, péssimo para a direita democrática no nosso país, ela foi fundadora da democracia e pode desaparecer nessa convulsão, mas é péssimo para o país como um todo. E, portanto, é muito bom que nós nos apercebamos que temos um caminho estreito e que queremos passar ao largo do abismo e que a esquerda tem uma responsabilidade de oferecer caminhos, que é para depois termos tempo para que a direita democrática se reconstrua e para que nós, em diálogo com a direita democrática, façamos o elevar da fasquia do exercício do poder no nosso país.
Acredita que se a direita ficar mais tempo na oposição terá hipótese de se reconstituir ou assistiremos a essa erosão?
Eu acho que é a única hipótese que tem. Se acharem que vão para o poder e, de uma maneira ou outra, partilham o poder com André Aventura porque, na verdade, “lhe damos a volta” ou “ele já foi do PSD” ele às vezes até se comporta e fala bem e é polido”, quando sabemos que depois volta o discurso agressivo de ódio e divisão do país. Não há nenhum exemplo em que o centro-direita não cometa esse erro de “vamos dar a mão” à extrema-direita e a extrema-direita não lhe devora o braço. Agora, acho que com uma governação de esquerda que não seja arrogante, que fale com o centro e com a direita democrática, nós podemos fazer algumas coisas porque acho que são boas para os cidadãos e interessantes para toda a gente. Por exemplo, andamos a discutir política de alianças, gastamos uma boa parte das entrevistas nisso. E se Portugal tivesse, como outros países têm no mundo, um sistema de coligação de contagem. Não é os partidos irem coligados, mas pré-anunciarem que, para o efeito do método D’Hondt, a contagem das listas é feita em conjunto entre aquelas famílias políticas. Isto existe na Dinamarca, por exemplo. Vai passar a existir no Brasil, chamam-lhe federações partidárias. Aí, em vez de estarmos a adivinhar o que vai acontecer no dia 11: a política de alianças é clara aos cidadãos, os cidadãos ganham com isso, sabem que naquela família política os votos são contados em conjunto, embora os partidos sejam distintos, e, por outro lado, os partidos saem beneficiados porque há menos votos desperdiçados também. Quem é que não quer fazer isto em geral? PS e PSD…
Que são quem interessa…
Mas PS e PSD têm de ter a grandeza que já tiveram há 50 anos, de perceber que se neste momento não são generosos com a democracia, o que vai acontecer é a degradação do sistema político que os vai levar a eles para o fundo porque as pessoas vão dizer entre os políticos do sistema e os antissistema vão para os do antissistema. Ora, nós temos de provar que é possível defender o regime democrático com paixão, com criatividade, com imaginação, e que isso é mais entusiasmante para os nossos cidadãos e para todos nós do que estarmos a ir pelo “deixar o circo pegar fogo”.
Caso exista uma maioria de esquerda, tendo em conta as dificuldades que existiram no tempo da chamada geringonça para estabelecer aqueles entendimentos bilaterais. Acredita que poderá surgir mais do que um texto de um mínimo denominador comum? Falou há bocado da Palestina, e a Ucrânia, por exemplo, como é que tenciona abordar essa questão nesse entendimento escrito?
Acredito que haja essa maturidade. Acredito que, num acordo, há sempre coisas em que não ficam todos contentes ao mesmo tempo. Mas também acho que há uma nova geração de lideranças. E eu acredito mesmo que esta geração, que é uma geração do 25 de abril, tem uma gratidão muito grande ao regime democrático e que terá essa capacidade. E já vão dando sinais de que tem essa capacidade de se entenderem. Perguntou-me pela Ucrânia. Bem, claramente, para o Livre, nós devemos ajudar a Ucrânia a ganhar a guerra.
Mas como é compatibiliza isso com o PCP e com o Bloco, por exemplo?
Bem, acho que num programa de governo, nós temos de ver que a política externa portuguesa tem uma certa continuidade e que a posição da política externa portuguesa é a de construção do projeto europeu e que o projeto europeu precisa que o projeto neoimperial de Vladimir Putin seja derrotado. Vai ser certamente um debate difícil, mas é um debate em que vamos conseguir encontrar a formulação.
Mas será uma linha vermelha?
Para nós, não podemos abandonar a Ucrânia.
O Presidente deve exigir um acordo escrito?
Bem, o presidente não exigiu em 2019 e isso, no nosso entendimento, foi um erro. Foi um erro a esquerda ter, digamos, aproveitado essa preocupação ou facilidade para não ter acordo, porque isso depois deu no colapso das negociações orçamentais dois anos depois. É uma preferência forte da parte do Livre que haja um acordo escrito, e que ele seja multilateral e multipartidário. Agora nós temos de passar para um sistema que funciona e o sistema que funciona, não é preciso inventar a roda, funciona na Alemanha, na Dinamarca, nos Países Baixos, é quando temos governos de três, de quatro, de cinco partidos, sentarem-se à mesa. Não estamos com a guilhotina dos duodécimos e nós temos um orçamento, temos tempo para negociar, e demore-se o tempo que for preciso demorar, temos grupos de trabalho que devem envolver a sociedade civil. Acho que isso ainda seria melhor, seria, do nosso ponto de vista, a cereja em cima do bolo, que não fosse só os gabinetes partidários a negociar, e inclusive também aí temos de dar passos para aquilo que nós não sabemos tudo. Por exemplo, todos os partidos de esquerda são pela regionalização.
Aquilo que nós dizemos no Livre é: porque é que não se faz, como se fez na Irlanda, para o caso do referendo do aborto. Porque é que não se faz uma assembleia cidadã com gente de todo o nosso país, acerca da regionalização? Que é para depois podermos discutir isto, sem caricaturas, sem demagogia, porque já antes, ainda antes, dos partidos e dos políticos discutirem, os cidadãos discutiram.
O Presidente da República deveria ou não exigir um acordo escrito desta vez, se fosse à esquerda, fosse à direita?
Eu acho que não é preciso o Sr. Presidente da República exigir e ele fará o que entender porque é um cargo em que toma as suas decisões e fala com mais gente do que eu para tomar as suas decisões. Agora acho que a esquerda, ainda antes de Marcelo Rebele dizer qualquer coisa, deve dizer entre si que precisamos de um acordo escrito.
Antes de dia 10?
Antes de dia 10 é melhor ainda, porque o que as sondagens nos dizem é que a direita neste momento está com a maioria. Nós podemos não acreditar nas sondagens e eu não acredito nelas até o último minuto, mas que elas estão aí, estão. E, portanto, a esquerda deve dar garantias às pessoas que têm algo de melhor para oferecer do que a autofagia, o processo de canibalização em curso da direita. Para isso, claro que seria desejável, nem que fosse um acordo mínimo, que é dizer às pessoas, estamos dispostos a partir de dia 10, se a maioria for à esquerda, nós criaremos grupos de trabalho, nós envolveremos a sociedade civil, eles terão os seus setores específicos de educação, de saúde e por aí fora, faremos uma avaliação independente do Estado das coisas no nosso país e estamos dispostos a fazer isso. E evidentemente, numa negociação, também vamos estar dispostos a que não é o programa de um só que vai ser implementado, há coisas que nós queremos e que podemos não conseguir todas, há coisas que os outros querem que vão ter de nos ceder a nós.
Rui Tavares, nessa altura, é deputado único, ambiciona ter um grupo parlamentar. É o mínimo patamar que estabelece, que ilações tira se não atingir o objetivo?
Bem, estou muito concentrado em ter esse grupo parlamentar, acho que será muito bom para o país.
O grupo parlamentar são dois deputados, mas queria ter mais?
Claro, eu quero ter Isabel Mendes Lopes aqui de Lisboa, que já fez um trabalho extraordinário no Gabinete Parlamentar e que é uma das pessoas que mais trabalhou no nosso programa. Quero vê-la deputada, quero ver o Jorge Pinto deputado pelo Porto, a Teresa Mota por Braga, quero ver o Paulo Muacho por Setúbal. Claro que a ambição é muita, há vontade de ver a esquerda verde europeia representada no Parlamento português, é muita, como vocês sabem, que é para mim uma vontade que já tem muito tempo.
Mas se não conseguir, admite deixar de ser um rosto do Livre, como é agora?, Quem votar em si agora tem a certeza que vai cumprir o seu mandato ou as Europeias podem ser também uma hipótese no seu cardápio?
Eu admito ter uma análise a fazer sobre se não conseguirmos um grupo parlamentar. Não sei exatamente quais são os termos dessa análise, porque não tenho tempo para pensar nisso. Pensarei nisso. Se acontecer, e como eu creio que não vai acontecer, não acontecerá. Em relação à Europa, toda a gente sabe o que eu sinto pela Europa e o que eu gosto dos temas da Europa, mas neste momento o que há é que as eleições são decisivas para o nosso país e, portanto, isso também não dá muito tempo para pensar o que é que se pode fazer em relação a outras eleições, terá de ser visto na altura em que tiver que ser visto.
Ou seja, não exclui ser candidato ao Parlamento Europeu?
Não excluo, não incluo.
Admite viabilizar um governo da AD só para que esse governo não tenha de se associar ao Chega?
Bem, vamos por partes. O Livre, se a direita ganhar, está na oposição. É um partido de oposição que é um lugar muito importante e que vai ser extremamente necessário se a direita ganhar. Em segundo lugar, o pressuposto da pergunta: termos de apoiar o PSD para o PSD não fazer uma coisa que basta ler a carta de princípios do PSD e ver que seria uma traição à história do PSD. Uma aliança com o Chega é uma traição à história do PSD. Eu acho extraordinário como é que ninguém diz a André Ventura, quando ele enche a boca, com Francisco Sá Carneiro. Sá Carneiro vociferaria nos termos mais estridentes sequer com a possibilidade de se fazer uma aliança com a extrema-direita. E, portanto, seria um escândalo moral, eu não entenderia que pessoas que eu respeito e admiro no PSD não batessem com a porta no dia a seguir para fundar um novo partido.
O Livre podia alinhar numa solução em que travava essas tentações do PSD?
O PSD não pode ter tentações deste género.
Não está a responder.
Ninguém deve ser colocado na situação de o PSD dizer “ajuda-me aqui a não vender a alma”. O PSD não pode vender a alma. Bom, agora, uma situação que é uma situação concreta e que também ela precisa ser denunciada. O Chega já disse que a qualquer governo em que não esteja e de que não faça parte da negociação faz uma moção de rejeição. Também o pressuposto em que isso não nos coloca deve ser denunciado, o André Ventura não pode impunemente dizer os maiores absurdos sem que a gente não se ria na cara desses absurdos.
Nunca votará a favor de uma moção de rejeição ao programa do governo apresentada pelo Chega?
Nós nunca votámos a favor de moções, de propostas, com a exceção de votos de pesar do Chega. Nunca. E connosco estão nessa atitude, até agora, PS e PCP. E, portanto, estes partidos pelo menos estariam na mesma situação, ou violariam o que têm feito até agora, ou então certamente não votariam a favor de uma moção de rejeição do chega. Se o Livre achar, mas é depois de conhecer o programa do governo, depois de conhecer os ministros que deve apresentar uma moção de rejeição, será o primeiro a fazer fila para entregar onde quer que ela se entregue na Assembleia da República. Se for o Chega a apresentar essa moção de rejeição por esta simples razão, que é, “não tem tacho, manda o governo abaixo”, nós, evidentemente, não votamos a favor disso.
E aí, nessa situação, o Livre pode viabilizar um governo da AD?
É uma inferência lógica desta situação específica. Se acharmos que não o devemos fazer, seremos o primeiro a apresentar a nossa própria moção de rejeição, ou votar favoravelmente uma que tenha sido apresentada pela esquerda. Ajudar o Chega nos seus desígnios maquiavélicos? Não.
Falemos agora de algumas das propostas do Livre. Uma delas tem a ver com o Rendimento Básico Incondicional (RBI). Os números sugerem um custo superior a 25 mil milhões de euros, caso seja universal. Eu sei que a proposta do Livre é para um projeto piloto. Mas faz sentido este caminho tendo em conta que essa solução, por exemplo, na Finlândia parece não ter resultado?
Então, o projeto-piloto custará entre 20 e 30 milhões de euros. Portanto, mil vezes menos do que essas contas feitas por baixo, as contas mesmo feitas por alto dá mil vezes menos. Por que fazer um projeto-piloto de rendimento básico e incondicional? Temos sido acusado, muitas vezes, nestas eleições e já nas anteriores, de querer testar para depois decidir. Declaramo-nos culpados com todo o gosto. Nós gostamos de testar para depois decidir. Na semana de quatro dias foi que fizemos.
Mas na Finlândia foi testado no terreno.
E as conclusões da Finlândia são muito interessantes. Porque aquilo que estava em comparação na Finlândia era o RSI e o RBI. E as conclusões desse estudo foi que as pessoas que estavam no RSI como tinham medo da guilhotina do perder o Rendimento Social de Inserção se arranjassem em emprego não procuravam emprego. As pessoas que estavam no grupo de controlo deste teste com o RBI, como sabiam que continuariam com aquele rendimento, mesmo depois de procurar emprego, procuravam emprego. Agora, se calhar, procuravam um emprego mais de acordo com critérios também daquilo que podiam fazer, porque havia um rendimento que já estava garantido e procuravam fazer coisas como ter um pequeno negócio ou um emprego na área social ou voluntária que, aliás, acrescentam a sociedade e isso é uma coisa boa ou não é uma coisa má. Agora, podem perguntar se fizeram na Finlândia porque é que nós fazemos em Portugal. Quando, aliás, o que vemos é não os economistas, todos os economistas sérios discutem este assunto como sendo um assunto que vale a pena ser discutido e testado, mas nos políticos ou nos economistas com um chapéu de político dizer assim, já sei que vai correr mal porque as pessoas não querem trabalhar, diz está à direita. À esquerda diz, já sei que vai correr mal porque isso é um ataque ao Estado Social porque as outras provisões ficam em risco.
Mas não ficam?
É um bocadinho como o Galileu não é quando havia aquela história que é que cai primeiro da Torre de Pisa não é se é um peso ou se é uma pluma. Vai lá e experimenta quer dizer, vai lá e experimenta. Porque é que isto deve estar excluído das práticas políticas normais? Nós experimentamos e descobrimos coisas, algumas das quais nos servem para nossa experiência prática na Administração Pública, em Portugal. Porque nós fizemos no ano passado uma transferência direta para a conta das pessoas e deparámos com imensos problemas porque houve quem recebeu e não devia ter recebido, quem não recebeu e devia ter recebido, quem não tem conta bancária e precisava de vale postal. Na altura, o que eu disse a Fernando Medina, ministro das Finanças, quando de repente Portugal fez uma coisa que não foi uma experiência, foi mesmo um momento de rendimento básico não completamente incondicional, mas uma transferência direta ad hoc ocasional e que custou muito mais do que os 20 a 30 milhões do projeto piloto. Nós podemos prever um Rendimento Básico Incondicional variável que funciona como estabilizador da economia. Tal como nós temos um Banco Central Europeu independente que determina a taxa de juro, nós podemos também imaginar um Conselho Económico e Social independente que determina que o Rendimento Básico Incondicional é mais alto num período de recessão, as pessoas não sofrem tanto, não há tanto sofrimento desnecessário e depois é mais baixo num período de inflação porque aí nós podemos utilizá-lo como ferramenta anti-inflacionária e num período em que a economia está sobreaquecida o Conselho Económico e Social diz agora o RBI vai descer que é para arrefecer a economia. Deixem Portugal testar que é para falar com o conhecimento de causa por que se não a Finlândia tem conhecimento de causa e nós não temos por que não fizemos.
Justiça, há arguidos no inquérito da Madeira que estão presos detidos há duas semanas sem medidas de coação, não sente algo de profundamente errado nisto?
Resposta certa, sinto. É profundamente errado, independentemente do que nós possamos achar acerca do PSD na Madeira, do excesso de familiaridade entre poder económico e poder político na Madeira, a forma como excesso familiaridade entre poder económico e poder político na Madeira já deu cabo do quarto poder que é independência da imprensa na Madeira, porque não há praticamente imprensa da oposição na Madeira. Tudo isso podemos achar as piores coisas, mas estas pessoas não podem estar presas tanto tempo desta forma. E quando eu digo que há algo de errado no exercício do poder em Portugal não é só do poder político, é do poder judiciário e, já agora, também há algumas coisas de errado no exercício do poder mediático e, portanto, precisamos todos de elevar um bocado o nosso jogo e de fazer o nosso melhor isto não é o melhor que a Justiça pode fazer, lamento.
E o Livre tem alguma proposta concreta sobre este assunto?
Nós temos de abrir um grande debate sobre a Justiça que não pode ser um debate só de políticos e, portanto, evidentemente que tem que ser chamada a esse debate o próprio poder judicial e o judiciário são as suas múltiplas vertentes, mas tem que ser um debate que dê resultados entre esses resultados. Eu estava no Parlamento Europeu quando começaram a sair as fichas comparativas dos sistemas judiciais europeus e é uma vergonha vermos Portugal a demorar 3 anos a resolver casos civis que na Dinamarca se resolvem 3 semanas com o impacto que isto tem para a economia. Em Portugal 3 médicos, 3 enfermeiros, 3 administrativos podem propor ao Estado criar uma unidade de saúde familiar e até podem gerir de uma forma mais flexível, porque é que oficiais de Justiça, juízes, magistrados não podem propor a criação, não digo de um tribunal, isso seria talvez ir longe de mais, mas de um julgado de paz? Porque eu já vi coisas serem resolvidas em julgados de paz de uma forma mais célere e mais humana, com as pessoas a serem mais bem tratadas do que aquilo que a gente vê nos tribunais a serem tratadas, ainda uma cultura de uma grande sobranceria, de uma grande arrogância em relação às testemunhas.É uma proposta que vale a pena discutir.
Para fechar, por que é que o Livre quer descriminalizar a ofensa à honra do Presidente da República? É uma das propostas que consta do vosso programa, considera anacrónica a lei em vigor?
Sim, é um anacronismo. A ofensa ao Chefe de Estado era um crime típico das constituições do século XIX e do início do século XX, foi caindo em desuso, está na nossa Constituição. Não é das nossas dez bandeiras, ou se calhar 20 bandeiras eleitorais, mas quando há um processo de revisão constitucional, é uma das propostas que entregamos porque nos parece que numa visão republicana que nós temos da política, há liberdade de expressão e as ofensas à honra e à dignidade das pessoas devem ser julgadas nos tribunais para toda a gente da mesma maneira.
Já agora, como historiador, lamenta como fez Paulo Portas que os 500 anos da comemoração de nascimento de Camões e a morte de Vasco da Gama não estejam a ter uma celebração mais sonante?
Lamento, porque são sempre ocasiões que nós temos de conhecer melhor a nossa história e mais do que como historiador, como amante da nossa literatura e da nossa língua, devo dizer que ainda me parece mais triste não estarmos a comemorar os 500 anos de Camões. Portugal é um dos poucos países no mundo em que o seu dia nacional é um dia que celebra um poeta, o dia da morte, valia a pena também celebrar os 500 anos do seu nascimento. Aí temos sempre alguma folga porque não sabemos exatamente qual é que é o ano, mas acho que vamos a tempo ainda, até nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, de celebrar aquele poeta que de certa forma recriou a nossa língua para a língua que falamos ainda hoje.