"Diplomacia da cobardia" impede Portugal de estar "do lado certo da História": "nada pode explicar" recusa a incluir referência à fome em Gaza
À TSF, Rui Tavares sublinha que esta "omissão" será um "daqueles atos da diplomacia portuguesa que ficará muito mal na História". Já Mariana Mortágua lamenta a "hipocrisia" e os "duplos critérios" do Governo, que acusa de estar "alinhado" com os Estados israelita e norte-americano
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O Livre lamenta que a "velha diplomacia da cobardia" continue a vigorar em Portugal e o Bloco de Esquerda denuncia um "interesse oportunista" que está a "impedir" uma tomada de "ações diplomáticas" que coloquem o país "no lado certo da história", após o jornal Público ter revelado a oposição lusa à inclusão do direito dos palestinianos à alimentação, na declaração final do Conselho de Segurança Alimentar da cimeira da CPLP.
O jornal Público noticiou que, durante a reunião do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP (Consan-CPLP), na segunda e terça-feira na Guiné-Bissau, a delegação portuguesa opôs-se a que, na declaração final do conselho da cimeira de Bissau, aprovada na sexta-feira pelos chefes de Estado e de Governo, constasse uma referência à insegurança alimentar dos palestinianos da Faixa da Gaza, que acabou por não ser incluída.
Numa pergunta dirigida ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, através da Assembleia da República, o Livre salienta que essa referência tinha sido proposta por representantes da sociedade civil e considera-a justificada, tendo em conta que a reunião do Consan-CPLP era subordinada ao tema "A CPLP e a soberania alimentar: um caminho para o desenvolvimento sustentável". O partido pergunta assim a Paulo Rangel "quais os fundamentos da objeção do Governo de Portugal à inclusão de uma referência à situação de insegurança alimentar em Gaza na declaração da V Reunião do Consan-CPLP".
Em declarações à TSF, o porta-voz do Livre, Rui Tavares, afirma que "nada consegue explicar este não alinhamento com aquilo que diz a ONU e o seu secretário-geral, António Guterres, e com aquilo que diz a Igreja Católica" a não ser "a velha diplomacia da cobardia". Avisa mesmo que esta "omissão" será um "daqueles atos da diplomacia portuguesa que ficará muito mal na História".
[A diplomacia da cobardia] evita dizer as coisas com medo de poder melindrar alguns parceiros, seja em Washington, seja em Telaviv seja até em Berlim. Portugal pode ter relações bilaterais com esses parceiros, sem com isso estar a apagar a sua própria posição, que historicamente tem que ser uma posição do humanismo.
Ouvida pela TSF, a deputada úncia do BE, Mariana Mortágua — que também enviou uma pergunta dirigida a Paulo Rangel para saber a razão da oposição da delegação portuguesa, se foram dadas orientações pelo Governo nesse sentido, e que medidas é que o executivo vai adotar "para reverter esta situação" —, acusa o Governo português de se esconder atrás da "ideia hipócrita" da criação de dois Estados (enquanto um deles está a ser "aniquilado"), uma situação que diz ser "cada vez mais insuportável".
"Isto é o melhor exemplo da hipocrisia das relações internacionais, dos duplos critérios, de quem se diz preocupar com o direito Internacional e com os direitos humanos, enquanto assiste impávido a um massacre desta natureza", sublinha.
Mariana Mortágua denuncia ainda um "interesse oportunista" e fala num "alinhamento" de Portugal com o Estado israelita e norte-americano, uma "aliança" que impede o país de "de tomar ações diplomáticas que possam colocar-nos do lado certo da história".
Há de haver um dia em que todos vão olhar para trás e todos vão ser a favor da Palestina. A pergunta é se ainda vai haver Palestina ou se ainda vamos ter palestinianos então.
Também o PCP enviou uma pergunta a Paulo Rangel através da Assembleia da República sobre o mesmo assunto, na qual defende que a referência à insegurança alimentar na Faixa de Gaza era "incontornável no contexto atual" e era "particularmente relevante" tendo em conta o tema da reunião do Consan-CPLP.
O partido acusa o Governo de já ter assumido uma "chocante posição de negacionista face ao genocídio do povo da Palestina" e de ter evidenciado "a sua obstinação em manter Portugal na 'minoria da vergonha', dos governos que se recusam a reconhecer o Estado da Palestina".
"Agora, decidiu acrescentar a esse aviltante currículo a sua intervenção para impedir a referência à fome e insegurança alimentar das populações e das crianças de Gaza", lê-se.
O PCP pergunta assim a Paulo Rangel como é que o Governo "explica este incompreensível e injustificável posicionamento de Portugal na reunião do Consap-CPLP, de travar e impedir qualquer referência na declaração final à tragédia da fome em Gaza".
Já o PS vai também pedir uma audição com o ministro dos Negócios Estrangeiros.
A guerra levada a cabo por Israel na Faixa de Gaza já provocou mais de 58 mil mortos, a destruição de quase todas as infraestruturas de Gaza e a deslocação forçada de centenas de milhares de pessoas.
A organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras avisou que a subnutrição aguda em Gaza atingiu “níveis históricos” em dois dos seus centros locais, sublinhando que grande parte dos afetados são crianças ou grávidas e lactantes.
Na clínica da Cidade de Gaza, o número de doentes nesta situação “aumentou exponencialmente em menos de dois meses”, passando de 293 casos em maio para 983 no início de julho.
A organização sublinhou que uma grande parte dos doentes atendidos nas suas clínicas são crianças, especificando que um em cada três tem entre 6 meses e 2 anos de idade.
Além disso, atualmente, mais de 700 mulheres grávidas e lactantes e quase 500 crianças com desnutrição grave e moderada estão internadas nestes dois centros de nutrição terapêutica de ambulatório, acrescentou a organização.
A organização médica referiu que já antes do início da ofensiva israelita, em outubro de 2023, Gaza dependia fortemente da entrada de mercadorias e mantimentos, com uma média de 500 camiões por dia a entrar na Faixa de Gaza.
No entanto, desde 2 de março deste ano, quando Israel reforçou o seu bloqueio, o número de camiões que entram na Faixa de Gaza caiu drasticamente, o que provocou uma escassez e um aumento acentuado dos preços.
Mesmo os produtos básicos estão fora do alcance da maioria da população, sendo que um quilo de açúcar é vendido por cerca de 76 dólares (cerca de 65 euros), enquanto um quilo de batatas ou farinha custa quase 30 dólares (cerca de 26 euros), segundo dados do Programa Alimentar Mundial (PAM).
Isto levou muitas famílias a reduzir a sua ingestão de alimentos a uma única refeição por dia, sem acesso a pão, vegetais frescos ou proteína suficiente, e muitos pais saltam refeições para alimentar os filhos.
