Escrever sobre Mário Soares foi uma "tarefa épica porque é uma vida cheia de acontecimentos"
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Na semana em que se assinala os cem anos do nascimento de Mário Soares, a TSF viajou até uma data marcante na vida do socialista: 26 de janeiro de 1986, quando foi eleito Presidente da República.
Na altura, o cofundador do Partido Socialista disputava a corrida a Belém. Uma luta renhida, em que teve como principal adversário Freitas do Amaral, fundador do CDS.
Esta é a história que o filme “Soares é fixe” (2024) quer contar, acrescentando alguns episódios da vida de Mário Soares.
Quem escreveu esta longa-metragem foi João Lacerda Matos. Em entrevista à TSF, o argumentista lembra quando fez campanha por Mário Soares na escola, quando ainda era muito novo para votar. Conta também como foi escrever sobre o “Presidente de todos os portugueses”, que recorda como um homem que lutava pela união.
Porque é que a noite de 26 de janeiro de 1986 merece um filme?
Porque foi um dos momentos mais importantes da jovem democracia portuguesa. Ainda não tinham passado 12 anos desde o 25 de Abril e, de repente, Portugal já estava outra vez numa situação de uma grande bipolarização política, e foi preciso haver dois homens que eram, na verdade, dois grandes senadores da nossa democracia, frente a frente, para que o combate político fosse definitivo. Embora [o combate] fosse bastante violento nas palavras, foi sempre, eu diria, de um grande cavalheirismo, e isso é importante.
Mário Soares estava lá também para depois, logo a seguir de receber os resultados, dizer que era o “Presidente de todos os portugueses”, e isso foi uma frase que, aliás, ficou e ainda hoje é utilizada. Sempre que um Presidente é eleito volta a essa frase.
Como é que foi escrever este filme? Imagino que teve de recorrer a muitos arquivos, ver muitos debates...
Escrever sobre o Mário Soares seria sempre uma tarefa de uma enorme responsabilidade e também uma tarefa épica porque é uma vida cheia de acontecimentos.
A história deste filme começa com a ideia de fazer um biótico de Mário Soares. Era necessário, nesta pequenina história que se conta de um pouco mais de 24 horas na vida de Mário Soares, recorrer a algumas memórias que são fundamentais e importantes, não só da própria campanha eleitoral, mas da vida de Mário Soares, da sua relação até com a esquerda e com os partidos de esquerda.
A transmissão televisiva também é interessante porque é muito diferente do que temos agora
Foi um trabalho muito aturado e muito longo de ler entrevistas, ler livros, procurar registos de imagem - aliás, a noite eleitoral está toda disponível no site da RTP.
A transmissão televisiva também é interessante porque é muito diferente do que temos agora. Foi a primeira noite em que se utilizou um computador para mostrar gráficos, e nota-se isso muito no lado mais artesanal da própria apresentação. É uma noite em que, quando não havia novos dados, se passavam a números musicais como a Tonicha, que canta duas vezes nessa noite. Então, todo esse lado mais até do tempo e do momento foi interessante também depois poder reproduzir no filme.
E, para o título, inspirou-se nos gritos de apoio da Juventude Socialista (JS).
Sim, era incontornável. “Soares é fixe” é, talvez, um dos maiores ou dos melhores slogans de sempre por tudo aquilo que engloba. É um slogan que vem da JS, portanto, cristaliza em si mesmo um espírito dos anos 80 e de uma palavra que era muito utilizada nessa altura - e que ainda hoje, envelheceu bem, e palavra “fixe” continua a ser utilizada.
É também a ideia de uma campanha eleitoral, que começa com muito poucas hipóteses de vitória, e através dessa mistura entre juventude e veterania, entre um animal político de capaz de travar mil batalhas e uma força que conseguiu ter junto dos jovens. Não é apenas o “Soares é fixe” como o slogan, mas é também uma referência à participação de muitos atores, cantores, músicos e autores junto da campanha. Há uma onda de juventude e de vontade de permanecer na mudança que são, obviamente, muito atrativas para quem vai depois escrever uma história dramática que pretende ser uma visão ficcional daquilo que é o facto histórico e, portanto, tem sempre um lado de autor, não só de quem escreve o guião, mas também de quem realizou o filme.
Sei que na escola fez campanha por Mário Soares. Quem é Mário Soares para si?
Mário Soares, para mim, é várias coisas. Primeiro, foi um exemplo político. A minha família estava à esquerda. Fui educado à esquerda e não à direita, e na esquerda o homem que falava de socialismo em democracia era Mário Soares, não havia outros.
Depois, porque ele era meu vizinho. Vivi muito tempo perto da casa de Mário Soares e às vezes encontrava-o no Campo Grande e algumas das sequências da série e do filme são baseadas em coisas que eu vi. Havia ali uma grande proximidade. Era quase como se fosse uma pessoa ali do núcleo da vizinhança. Mais tarde, na campanha eleitoral, eu era muito novo, tinha 12 anos, portanto não ia votar sequer, mas havia um sentimento da bipolarização política e de que aquele era o rumo certo e de que aquele era o homem capaz de congregar à sua volta todas estas vontades.
Claro que depois, mais tarde, quando já tinha mais idade e comecei a ler sobre tudo o que se tinha passado de [19]74 a [19]80, percebi as contradições e percebi melhor algum ódio que às vezes havia da parte de pessoas que eu conheço em relação à figura de Mário Soares. Mas, ainda assim, acho que ele, no fim das contas, e agora que estamos tão longe desses tempos - ou tão perto, não sei -, Mário Soares para mim continua a ser uma figura daquilo que deve ser a democracia. Não é a única, atenção, mas é. Daquilo que deve ser o podermos concordar em discordar. E isso, de facto, ficou-me completamente para a vida.
Para quem ainda não viu o filme, o que acontece? O que é que acontece?
O filme “Soares da Fixe” retrata as 24 horas do dia das eleições de presidenciais da segunda volta. É muito centrado nas duas sedes de campanha, a de Mário Soares e de Freitas do Amaral.
Vamos saltando de uma sede para outra à medida que os resultados vão saindo e que, tal como aconteceu nessa noite, se vai percebendo que, apesar de tudo, é uma corrida muito, muito equilibrada. Um dos primeiros momentos é quando se sabe que a abstenção foi mais baixa e que, portanto, o Partido Comunista Português cumpriu a promessa de, apesar de todas as suas reservas, votar em Mário Soares. Isso é também o mote para algumas memórias do tempo em que Mário Soares e Álvaro Cunhal foram adversários políticos e que travaram lutas bastante agressivas na altura do Processo Revolucionário em Curso e depois, mais tarde, até às primeiras eleições legislativas. Portanto, há sempre uma viagem entre aquilo que está a decorrer naquela noite e aquilo que é o passado recente do político Mário Soares.
Depois, paralelamente a estas histórias, temos duas histórias de duas figuras diferentes que estão no fundo a viver também aquela noite. Uma delas é de uma jovem que tem uma missão - que eu não vou contar qual é, para as pessoas verem no filme -, mas que representa no fundo, a Juventude que está afeta a Mário Soares. A outra história é de uma família que sai para a rua para celebrar na sua ingenuidade de pensar que todos estão do seu lado, e é recebida pelo lado oposto.
Alguns destes momentos são baseados em histórias reais e também em histórias que depois se tornaram factos da própria história.
Um dos episódios, que teria que lá estar, é o da marinha grande. Este episódio fica de tal maneira indelével na política portuguesa que hoje ainda usamos a expressão, de dizer que o político A ou B “teve a sua marinha grande” quando alguém, estando em risco, tira daí um benefício político e de empatia do eleitorado, como aconteceu com Mário Soares.
Alguns dos episódios são mais de reflexão, momentos mais de incerteza, mas sempre com uma fleuma e uma força na personagem de Mário Soares, e depois também um confronto com Freitas do Amaral, o célebre telefonema que foi feito entre ambos no final da noite, tudo isso está lá no filme. Eu diria que [o filme] deve ser visto como uma obra de ficção, mas tem muitos factos históricos.
