Francisca Van Dunem: "Há anjos integros que decidem quem é corrupto e não corrupto"
Nasceu em Angola, veio para Portugal no início dos anos 70 para se licenciar em direito. Francisca Van Dunem desempenhou em mais de 30 anos todos os cargos dirigentes do Ministério Público, tirando o de Procuradora-Geral da República. Jubilou-se depois de sair do governo.
Corpo do artigo
Vamos começar por um evento que aconteceu esta semana. Foi recebido pelo Presidente da República um grupo de representantes dos subscritores do designado Manifesto dos 50 por uma reforma na Justiça. Agora são mais 50 personalidades de esquerda e direita, de diferentes áreas, incluindo o PS, como Augusto Santos Silva, Maria João Rodrigues, Ferro Rodrigues, Vital Moreira. Como mulher com carreira de vida na Justiça, procuradora e ministra, subscreve as preocupações traduzidas neste documento?
Habitamos atualmente em sociedades de desconfiança e de conflito. Existia, subjacente a isto, um conflito que existe há muito tempo entre, por um lado, o poder judicial e, por outro lado, o poder legislativo e executivo. Temos claramente uma relação de desconfiança. O poder judicial desconfia do poder legislativo e do poder executivo, na medida em que tem a perspetiva de que em cada um dos seus agentes estará um eventual criminoso. Por seu turno, os poderes executivo e legislativo desconfiam do poder judicial porque acreditam que o poder judicial estará em permanência à procura de um qualquer pretexto para o enfrentar. E, portanto, vivemos, infelizmente, uma sociedade nessa perspetiva de enfrentamento e não tivemos interlocutores à altura do diálogo que era necessário para desfazer este nó. E, portanto, este manifesto é um manifesto de desconfiança. O manifesto acaba, no fundo, por ser o clímax desse ambiente que é um ambiente de guerra surda existente em ambas as partes e a expectativa que tenho é que este sobressalto cívico, se assim se pode chamar o manifesto que foi assinado, mas percebo que há pessoas das mais variadas origens, com as mais diferentes preocupações. Não é possível dizer que são todas pessoas interessadas em processos. Provavelmente também nem todas as afirmações que fazem serão justas. Agora, acho que não é possível dizer que são todas as pessoas interessadas em processos, mas é possível dizer que as pessoas têm todo o direito a exprimir o estado de desconforto geral em termos sociais com algumas coisas que se passam na área da justiça e acho que os agentes da justiça têm todo o interesse em clarificar o que se passa e eventualmente até em fazerem uma avaliação daquilo que tem sido o seu posicionamento nestes anos e das razões que nos levaram a este estado das coisas.
Falou em enfrentamento, por acaso pensava que era mais desconfiança, mas acha que há mesmo uma vontade de afrontar?
Não falaria numa vontade de afrontar, acho que é a desconfiança que depois gera comportamentos que são comportamentos de enfrentamento. Portanto, a ideia de que por trás de qualquer atitude, de qualquer ato de um membro do poder executivo, normalmente o poder executivo ou poder, quer executivo ao nível central, quer ao nível local, pode estar eventualmente uma intenção de apropriação de uma medida, um ato de improbidade, uma intenção de violação dos deveres. Acho que precisaríamos de ter provavelmente uma maior aproximação, porque a Constituição fala de separação, mas fala de interdependência dos poderes do Estado. E diria que se houvesse uma maior preocupação em explorar um pouco a dimensão da interdependência e em qualquer das partes conhecer melhor a outra, estou convencida que provavelmente teríamos chegado a um melhor porto.
Mas a interdependência vai contra a ideia de "à justiça o que é da justiça e à política o que é da política", não?
Não, isto é a Constituição que diz.
Então é a prática que está contra a Constituição?
Não, a independência dos tribunais é uma garantia constitucional e a autonomia do Ministério Público. Agora, a Constituição o que diz é que os três poderes são independentes. Legislativo, executivo e judicial. Mas têm de trabalhar em articulação, têm de se articular, porque de outra forma não faz sentido, nós somos sociedades complexas em que aquilo que são as estruturas de gestão societária têm de se articular entre si num trabalho conjunto. Não é possível imaginar uma sociedade só com poder judicial, uma sociedade só com poder legislativo ou uma sociedade só com poder executivo. Esses poderes existem, não deve haver interferência de uns relativamente aos outros, mas têm de conviver como membros de uma mesma casa, digamos, ou de uma mesma família que é um país.
E acha que este documento é mais contra a forma como é exercido o poder do Ministério Público ou contra o próprio Ministério Público?
Não diria que seja um documento contra o Ministério Público, não sejamos também fatalistas e não há nada trágico nisto, acho que esse documento é contra a forma como esse grupo de pessoas vê a ação do Ministério Público. Obviamente as pessoas estão no seu direito de ter essa visão, o Ministério Público, deduzo não está de acordo com isso ou seguramente o mais provável é que não esteja. Acho que o Ministério Público tinha todo o interesse em que estas questões fossem aprofundadas no sentido de se perceber, porque muitas vezes cá fora também não se percebe as razões pelas quais os magistrados agem de certa maneira e essa compreensão também tem de existir. Acho que há aqui uma falha ao nível do diálogo institucional. Não acho que os magistrados devam falar, mas acho que ao nível das cúpulas tem de haver efetivamente uma maior capacidade de diálogo. Cada um no plano dos seus poderes e sem cedências relativamente aos interesses dos outros, cada um defenderá obviamente uma parte, mas cada uma dessas partes integra o todo. Agora, estamos todos aqui a falar de quê? Estamos a falar do interesse público e do bem comum. Quando falamos de justiça é disso que falamos, quando falamos do Governo da nação é disso que falamos, quando falamos do Parlamento da nação também é disso que falamos. E, portanto, se estamos todos de facto orientados para o mesmo objetivo, há um nível de governança que tem de ser relativamente comunicável.
Fez carreira como magistrada do Ministério Público e foi já governante, ou seja, já esteve desses dois lados que estava a descrever. Que conclusões é que tira da intervenção do Ministério Público no processo que levou à demissão do antigo primeiro-ministro António Costa?
Compreenderá que sou magistrada e tenho o dever de reserva, o que significa que não devo pronunciar-me, não posso nem devo pronunciar-me sobre o processo em concreto. Portanto, não posso, não devo pronunciar-me sobre, mantenho as obrigações e os direitos da condição de magistrada. Portanto, não posso de facto fazer nenhum pronunciamento sobre o processo. E porquê? O dever de reserva não é nenhuma prerrogativa individual dos magistrados. O dever de reserva, em boa verdade, destina-se por um lado a manter a integridade e a independência do judiciário enquanto tal e destina-se também a evitar que por ação dos magistrados se vá deslegitimar o comportamento do outro. Porquê? Porque estou aqui a falar neste ambiente, que é o vosso ambiente, o ambiente da imprensa, mas os magistrados quando decidem os processos, decidem de acordo com princípios, de acordo com critérios, de acordo com regras, que são regras que lhes são próprias. No fundo, esses princípios, essas regras, esses critérios são diferentes daqueles que utilizamos aqui quando estamos a fazer uma análise jornalística. Se eu vier para aqui falar com jornalistas, como se jornalista fosse e fizesse uma análise jornalística da intervenção ou do desenvolvimento de um processo, o que posso estar a fazer é deslegitimar a própria ação da justiça. Nessa perspetiva, acho que o dever de reserva deve ser respeitado. Isso não significa que os magistrados não devam ter liberdade de expressão. Estamos a falar de uma dimensão diferente.
Então até onde pode ir essa liberdade de expressão?
Até onde não colida com o direito de reserva. Os magistrados, de facto, devem poder exprimir-se enquanto cidadãos que são, de pleno direito, relativamente às questões do judiciário, em termos gerais, em relação às questões da vida em sociedade, porque não? Acho que os magistrados, nesse aspeto têm alguma limitação, porque vivem um pouco num casulo. Diria que os magistrados são um pouco autocentrados. Autocentrados e muito fechados neles, muito fechados no seu próprio círculo. O que, de alguma forma, não permite respirar, por vezes. E a falta de respiração faz com que, eventualmente, não se tenha alguns inputs externos que se poderia ter e que seriam úteis para melhor compreensão da realidade.
Mas há magistrados que vêm para as redes sociais fazer comentários.
Essa questão é uma questão, de facto, muito debatida. A questão da liberdade de expressão dos magistrados e do uso de redes sociais para o diálogo. E em duas perspetivas diferentes. Uma perspetiva que tem a ver com discutir, por exemplo, processos numa rede social. As pessoas estão vinculadas a um dever de reserva e, por outro lado, além do dever de reserva, que resulta de não se comentar processos em curso, diria que os magistrados têm de ter alguma reserva individual e não exporem os casos que estão a tratar em ambientes que possam ser ambientes porosos, como acontece com as redes sociais. Acho que isso é absolutamente condenável. Isso não se pode fazer. Depois, por outro lado, temos muitas preocupações com questões associadas à imparcialidade dos magistrados, mas provavelmente não há nenhuma vigilância em relação às redes onde há magistrados que, eventualmente, expunham e expõem posições relativamente à vida e relativamente até à atividade. Questões da nossa vida social e política, política ou partidária, o que acho que não deviam fazer.
Apesar de dizer que o dever de reserva não lhe permite fazer comentários sobre a intervenção do MP, do ponto de vista de uma avaliação política, digamos assim, uma vez que já exerceu também o cargo de ministra da Justiça, o primeiro-ministro fez bem em demitir-se?
O que lhe posso dizer é que qualquer pessoa, penso eu, que leve a política a sério, que seja de facto um político que se preocupe com a imagem e a dignidade do cargo e com o bem comum, naquele contexto, se demitiria. Devo, aliás, dizer que à luz dos dados que tenho da personalidade do doutor António Costa, com quem trabalhei, como sabem, no 21º Governo Constitucional, estranharia muito e ficaria mesmo muito surpreendida se ele não o fizesse. Acho que se um primeiro-ministro, se a determinada altura é suspeito, embora em Portugal não tenhamos a figura técnica de suspeito no Código de Processo Penal, aquilo que temos é arguido. E a partir do momento em que o primeiro-ministro é referido num comunicado, isso só pode significar que ele é arguido no processo. Porque se for suspeito, então não faz sentido referi-lo, não é? Porque o suspeito não existe tecnicamente. E, portanto, a partir do momento em que aparece uma referência pública o que há é que o primeiro-ministro pode estar envolvido num processo e significará que há condições para o constituir arguido. E nessa medida penso que a dignidade da própria função imporia que qualquer pessoa de bem se retirasse, não é?
Então o parágrafo é fatal.
O parágrafo do comunicado é fatal. Em termos objetivos se houvesse eventualmente uma maior perceção dos deveres e até mesmo do posicionamento institucional dos vários intervenientes, seria perfeitamente percetível que aquilo iria acontecer. Reparem, se eu imagino, por exemplo, uma situação em que um procurador-geral da República tem notícia de que foi participado ou houve uma participação contra ele envolvendo a prática de um crime de corrupção e tem também notícia de que quem é competente para desencadear o procedimento considera que há ali razões para desencadear o procedimento, o que é que faz? Não se demite? Acho que sim, que se demite. Não é ele que está em causa, mas está em causa a instituição. Já temos o ambiente suficientemente envenenado no que diz respeito à dignidade das instituições, no que diz respeito à própria utilidade das instituições e ao trabalho e serviço que elas devem prestar à sociedade na sua globalidade. E, portanto, as pessoas que ocupam lugares nas instituições devem ter claramente uma preocupação com elas, mas em primeiro lugar preocupar-se em definir as instituições. E às vezes isso implica, em certas alturas, que as pessoas assumam o afastamento delas para não contaminar.
Mas acha que a procuradora-geral da República se excedeu? Ou seja, num cenário em que o ex-primeiro-ministro não venha a ser arguido, como é que fica a situação da procuradora-geral da República?
Não quero pronunciar-me. Como sabem, tenho responsabilidades ao nível da nomeação da senhora procuradora-geral da República e, portanto, acho que por uma questão de cortesia não devo pronunciar-me sobre os atos da senhora procuradora-geral.
Mantinha a escolha que fez na participação que teve no processo?
O que posso dizer é o seguinte: um procurador-geral da República deve ser alguém que tenha competências técnicas do ponto de vista jurídico e que tenha competências de direção, porque é alguém que vai dirigir uma comunidade de magistrados, mas que também deve ter competências institucionais. Portanto, perceber a sua dimensão institucional do papel e agir em conformidade com isso. Quando se escolhe alguém, procuramos alguém que tenha de reunir esses requisitos, depois se na prática isso se verifica ou não, digamos que é um dado que não temos no presente, que só o futuro é que nos pode devolver a resposta a essa questão.
A procuradora vai ser substituída em outubro. No atual contexto, que perfil é que seria o melhor? Mais próximo de Lucília Gago ou da ex-procuradora Joana Marques Vidal, por exemplo, sem querer estar a limitar?
Não faço contraposição entre as duas pessoas. É verdade que o lugar da Procuradora-Geral da República, como qualquer lugar, acaba por ser influenciado pelas características pessoais de quem o exerce, mas diria que estes lugares, mais do que as pessoas, são a função, têm a ver com a função. É curioso, porque do ponto de vista da legislação, da lei, nem sequer é obrigatório que o Procurador-Geral da República seja nem um magistrado, nem sequer um jurista. Provavelmente poderia ser uma pessoa de bem, alguém em quem a sociedade confiasse o suficiente. Nunca aconteceu, no entanto. De qualquer modo, como disse e reitero, aquilo que considero é que o Procurador-Geral da República deve ser alguém que, ponto um, tenha elevadas competências técnicas, porque não é possível dirigir se não tivermos o domínio das matérias que são trabalhadas pelas pessoas que dirigimos. Depois, por outro lado, é preciso também que se saiba dirigir. É preciso assumir a direção, é preciso tomar decisões. Quem decide tem de tomar decisões, sejam elas fáceis de assimilar pelos outros, sejam elas simples, sejam elas mais complicadas. É preciso alguém que tenha capacidade para decidir. E sobretudo que resolva a questão da decisão hierárquica, que essa é uma dimensão muito importante. Em terceiro lugar, alguém que tenha bem presente a componente institucional daquele lugar. Do ponto de vista da hierarquia do Estado, a posição do Procurador-Geral da República foi muito degradada, mas o Procurador-Geral da República, em boa verdade, seria um par do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. E, portanto, compartilha do exercício do poder judicial, na medida em que o Ministério Público é que toma a iniciativa, sobretudo na área penal.
E alguém que dê mais a cara, provavelmente. Uma das críticas que tem sido feita à atual Procuradora são os silêncios e ausências em momentos críticos em que era necessário haver explicações.
O Procurador-Geral da República decide ele próprio os momentos em que deve falar e os momentos em que deve calar-se. Diria que é preciso termos também atenção que aquele lugar é um lugar extremamente difícil. Deixemos claro, é um lugar de muita conflituosidade em que alguém tem de enfrentar tensões. Tensões de sentidos diferentes. E, portanto, essa pessoa que está nessa situação, obviamente tem de saber a cada momento, tem de decidir a cada momento, se fala ou se não fala. Há pessoas que falam mais, outras que falam menos. Agora, do ponto de vista do sistema e do meu ponto de vista, o sistema só ganha em abrir. O sistema só ganha em reduzir os níveis de opacidade. O sistema só ganha em explicar. O sistema só ganha se os cidadãos compreenderem as razões e perceberem o que está a ser feito e porquê. Porque de outra maneira criamos aqui um nó, que já é um nó de incompreensão dos cidadãos relativamente àquilo que se faz no sistema de justiça e, num certo sentido, acabamos também por desvalorizar e descredibilizar o próprio sistema. Porque é um sistema que é opaco, que não se percebe, que parece agir diferenciadamente, com impulsos que não são compreensíveis, que não se consegue racionalizar. Nessa perspetiva, acho que só se ganha em reduzir a opacidade. Só se ganha no esclarecimento. Se é a própria pessoa, se tem depois alguém que faz isso pela pessoa, isso depois é outro aspeto. Agora, a comunicação é vital. Aliás, devo dizer-lhes que Cunha Rodrigues, que do meu ponto de vista foi o melhor Procurador-Geral da República que este país teve, esteve muitos anos no cargo, mas é uma pessoa de uma enorme diferenciação. Percebeu, nos anos 90, a necessidade da comunicação. Recordo-me que ele fez até umas jornadas sobre comunicação social e justiça que estão, aliás, numa pequena edição e isso foi nos anos 90, em que se juntou com os jornalistas, com pessoas da comunicação, para percebermos em que medida é que nos podíamos auxiliar reciprocamente, transmitindo a informação que era possível transmitir sem violação de segredos e falando uma linguagem que os jornalistas percebessem e que funcionassem, no fundo, como mediadores entre o sistema de justiça e os cidadãos em geral.
Nesse aspeto, deixa implícita uma crítica, entre aspas, à atual Procuradora?
Não, não tenho acompanhado.
Mas ficou aquém nessa expectativa da comunicação e clarificações?
Acho que cada pessoa, como disse, cada Procurador-Geral da República faz o seu próprio julgamento a respeito do modo como comunica. Disse-lhe também, e é tudo o que lhe posso dizer, que do meu ponto de vista, o Procurador-Geral da República não pode expor-se comunicando todos os dias, não pode banalizar a comunicação. Agora, quando estão em causa questões com determinado nível de relevância, questões que são críticas, que afetam outros sistemas, que afetam a atualidade do sistema político ou, eventualmente, noutro tipo de situações de igual gravidade, aí sim, aí acho que é preciso falar, aí acho que é preciso explicar às pessoas para que elas percebam o que é que está a acontecer e porque é que o Ministério Público está a agir de uma determinada maneira.
Julgo que aquando da nomeação de Lucília Gago, a propósito da saída de Joana Marques Vidal, se falou que houve quem defendesse que o que está escrito é que o mandato é único, mas que pode ser renovado. Partilha dessa ideia de que o mandato deve ser único e que a renovação é a exceção?
Vou-lhe dizer com inteira franqueza, essa questão foi suscitada por mim, acho até que foi aqui (n.d.r. entrevista de Francisca Van Dunem à TSF a 9 de janeiro de 2018) , e deu um brado enorme durante meses a fio. É verdade que a Constituição não proíbe a renovação, mas, por um lado, a lógica dos mandatos longos é justamente do mandato único. Por outro lado, é verdade que nunca houve coragem, porque há aqui um outro problema que é, às vezes, haver ou não coragem política para tomar certas posições. Recordo-me que a questão do mandato se colocou relativamente ao a Cunha Rodrigues, que penso que esteve 15 anos no cargo ou alguma coisa como isso. E as pessoas diziam que ele estava há muito tempo e na altura não havia um mandato fixado. Só que como foi também um tempo em que houve uma grande aproximação, digamos, entre a Justiça e a Política, no sentido de que houve um conjunto de processos envolvendo pessoas da área da atividade política, desencadeados pelo Ministério Público, também não havia coragem suficiente para se avançar e demorou muito tempo até se criar um mandato. Pronto, fez o mandato. E a perspetiva que se teve foi de se criar um mandato, e aliás é uma coisa que vai acontecendo um pouco por todo lado, mas antes tínhamos mandatos relativamente curtos, três anos, as comissões de serviço eram três anos. Os mandatos são quase todos de seis anos, são mandatos mais longos. A própria doutora Joana Marques Vidal, na altura Procuradora-Geral da República, tinha o entendimento de que o mandato não era renovável. Está escrito. Disse numa entrevista que o mandato não era renovável. Pronto, a certa altura mudou de ideias. Está no seu direito de mudar de ideias. Mas quando eu falei sobre isso, não houve da parte de ninguém nenhuma intervenção, no sentido de que havia internamente no Ministério Público a ideia de que aqueles mandatos não eram mandatos relativamente renováveis. Mas pronto, no caso não se coloca. A senhora Procuradora-Geral da República creio que já deu até notícia de que em nenhuma circunstância renovaria o seu mandato. Portanto, o problema não se coloca desta vez.
Fala-se muito da autonomia do Ministério Público. No seu entender, quais devem ser os limites para a autonomia dos magistrados do Ministério Público? Quando há inquéritos aos poderosos?
Não. A autonomia dos magistrados, a autonomia consagrada para o Ministério Público, tem duas dimensões: uma externa e uma interna. A autonomia externa prende-se com a possibilidade de o Ministério Público não ser afetado ou não ser importunado por decisões externas. Recordo, nomeadamente, que antes do 25 de Abril o Ministério Público não tinha autonomia e dependia diretamente do ministro da Justiça de quem recebia ordens e instruções. E, portanto, o 25 de Abril quebra esse modelo, quebra esse paradigma, e o Ministério Público passa a ter autonomia em relação ao poder político. Nomeadamente em relação ao poder político porque era disso que se tratava. Portanto, neste momento, a intervenção do poder político limita-se à nomeação do Procurador-Geral da República, proposto pelo Governo e nomeado pelo Presidente da República, e há essa dimensão da autonomia, embora muitas vezes apareçam vozes que querem pôr em causa a autonomia do Ministério Público de cada vez que há alguma coisa que não corre bem.
Ou seja, não está em risco.
Não, não há nenhuma razão para entender que a autonomia do Ministério Público está em risco.
E concorda com o atual estatuto?
Não. O estatuto, de facto, tem uma norma que foi introduzida, pronto, claro que é preciso perceber que momento foi, mas vamos deixar isso de lado. Tem uma norma nova que permitiu a alguns magistrados a leitura de que a intervenção da hierarquia não era possível relativamente a processos em concreto, a não ser no despacho de arquivamento, porque essa intervenção está expressamente prevista no Código de Processos Penais. Mas, sejamos claros. Por um lado, a Sra. Procuradora-Geral da República pediu um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral e o Conselho Consultivo, num parecer que creio que terá recolhido quase unanimidade, e que veio dizer que a hierarquia do Ministério Público se mantinha e que se mantinha relativamente a processos concretos. Esse parecer foi impugnado. A Sra. Procuradora-Geral da República, com base nisso, emitiu uma diretiva para ser seguida por todos os magistrados e o sindicato impugnou a diretiva. Mas o facto de o sindicato ter impugnado a diretiva não significa que ela não esteja em vigor. A impugnação não tem efeito suspensivo, e, portanto, a diretiva está plenamente em vigor. E depois também há uma coisa que se deve dizer. O Ministério Público é uma instituição hierarquizada. É isso que resulta da concessão e da lei. A hierarquia não penso que sirva para dizer como é que as pessoas vão vestidas, a hierarquia não é isso. É verdade que a hierarquia do Ministério Público é uma hierarquia diferente da dos funcionários, na medida em que o modelo de ordens e o modelo de instruções é alterado por referência à condição particular de um magistrado, mas é indiscutível que admitir que existe uma hierarquia e que a hierarquia não pode ter nenhuma internação processual, para mim, é uma completa desconstrução daquilo que está no estatuto e daquilo que prevê a Constituição. É um modelo novo, um outro modelo.
No seu mandato como ministra da Justiça foi aprovada em 2021 a primeira estratégia nacional de combate à corrupção e um dos instrumentos que estava previsto era um instrumento preventivo, como é o caso do mecanismo de combate à corrupção, com poderes que para lá de multar entidades que não tenham planos de prevenção de corrupção pode ir ainda além disso. Contudo, não se tem sentido que algo tenha sido feito nesta matéria ou as ferramentas tenham sido utilizadas na sua plenitude. Sente algum tipo de frustração pelos resultados que a estratégia tem dado à sociedade e à Justiça?
Estamos no início de 2024. O mecanismo tem apresentado relatórios anuais da sua atividade em que basicamente falava das questões relacionadas com a sua instalação. Acho que é preciso dar tempo para que as coisas aconteçam. De qualquer modo, não quero fugir da sua questão e devo dizer que penso que o mecanismo precisaria eventualmente de ganhar mais influência em termos sociais e institucionais.
Falta o quê? É lei? É funcionamento das várias áreas?
Não, o mecanismo basicamente neste momento está operacional, está a funcionar, mas tem um défice ao nível de funcionários. Quando o mecanismo foi criado, estava completamente afastado da mente de quem o criou com aquela ideia de burocratização. A lógica não é uma lógica burocrática. A lógica não é mais um elefante branco. A lógica é quase de um militante que chega ali, um militante de anticorrupção que chega ali, que tem as ferramentas, porque a lei lhe diz que tem esses poderes e que pode ter uma equipa, que até pode ser uma equipa relativamente pequena, e aquilo que tem de fazer é aplicar, por um lado, o regime geral de prevenção da corrupção. Depois, por outro lado, agir em termos de campanhas públicas anticorrupção. E agir onde? Agir nas escolas, nos programas escolares, trabalhar com as estruturas do Estado que são responsáveis pela formação e pela admissão de pessoas. Diria que na altura, provavelmente, tive ambição a mais, aquilo que pensava na altura que o mecanismo devia fazer era claramente um trabalho de militância anticorrupção. Com militância anticorrupção, digamos uma salvaguarda, com grande apoio legal que lhe é dado justamente pelas atribuições do mecanismo. Percebo que, provavelmente, também a circunstância de um modelo de recrutamento de pessoas para o mecanismo tenha tornado mais complexo ou mais difícil a ação quotidiana do mecanismo. A expectativa que tenho é que, à medida que o tempo for passando e se for avançando um bocadinho mais, aprofundando um bocadinho mais aquilo que são as missões do mecanismo isso mude. Também, francamente, estamos a falar de funcionamento de um ano. Vamos esperar um pouco.
Funcionará mais o reforço, o maior reforço de sempre, para a Polícia Judiciária, por exemplo, que aí sim os resultados vão ser mais visíveis?
Eles trabalham em campos diferentes. Estamos aqui a falar da Polícia Judiciária, obviamente, que, quando o reprime, também previne, porque há uma prevenção geral. Há uma prevenção geral que resulta do receio da perseguição penal e da punição. Mas esta outra prevenção que o mecanismo faz, repare, vivemos num país em que toda a gente fala de corrupção. Como é que se mede? Que dados é que temos? É a perceção. Nós vivemos com base na perceção. E a ideia do mecanismo também era que o mecanismo pudesse recolher informação, recolher e tratar, para que não só internamente tenhamos uma noção daquilo que acontece, efetivamente, nessa área da corrupção e da criminalidade conexa, como também para termos capacidade de resposta relativamente ao reporte que muitas vezes temos de fazer as instituições estrangeiras das quais somos parte. Nós somos parte do Greco, parte de outras instituições às quais temos de reportar, temos de dar informação. E um país não pode continuar a viver do palpite.
Mas não acha que esse ambiente está a densificar-se ainda mais? Ou seja, que há tendência a agravar-se?
Não. Falar de ser anticorrupção também rende. Criámos uma espécie de uma plataforma de anjos íntegros, que são pessoas que falam sistematicamente da corrupção dos outros, para quem todas as outras pessoas são improbas, são corruptas, não é? E obviamente quem define quem é corrupto e não corrupto, são de facto essas pessoas, que têm para si, a reserva da definição do que é integridade. Também há interesses associados a isso, porque isso também define carreiras. Há pessoas que vivem disso. E a partir do momento em que isso quase se profissionaliza, temos também de questionar as respostas que aparecem desse lado.
Nasceu em Angola, suponho que tem acompanhado a questão do debate que foi aberto no final de abril pelo Presidente da República sobre o dever de reparação dos colonizadores aos povos colonizados. O que é que pensa disto?
Acho que não há melhor reparação do que o avanço em termos de respeito para os direitos fundamentais das comunidades oriundas desses países onde se foram praticados efetivamente essas ações. Do meu ponto de vista, fazer entregas de peças, e entendo que aquelas peças foram retiradas em ambiente de violência e rapina e que possam ser devolvidas, mas é um bocadinho como quando me perguntam se sinto muita falta de Angola. As mangas, as bananas… É que as mangas eu compro, percebe? As mangas compro em qualquer lugar, mas a vida dos meus próximos, as pessoas que amava e que perdi, isso não tem remissão possível. E, portanto, temos aqui uma linha em que há atos de barbárie que foram praticados e que não têm reparação do ponto de vista monetário. Não são reparáveis do ponto de vista monetário. Então, se é preciso, se é possível reparar alguma coisa, essa reparação faz-se pela dignificação dos herdeiros dessas pessoas e dos herdeiros destes processos coloniais que vivem hoje, nomeadamente aqui em Portugal, das comunidades que estão aqui em Portugal e que devem ter um tratamento justo, um tratamento equitativo. Acho que essa é a grande exigência que se deve fazer.
Estamos no sentido contrário da reparação, a julgar pelos últimos tempos, estamos a dignificar cada vez menos essas comunidades, ou não? Qual é o olhar que lança nesta altura?
Acho que, de facto, estas comunidades não têm tido o tratamento que mereciam. Repare, não creio que a representatividade, por si só, não é um elemento determinante da avaliação que se pode fazer do modo como essas comunidades vivem. Mas ainda há pouco tempo estava a escrever um artigo sobre isso e lembrei-me de uma coisa. Eu, no princípio dos anos 80, fui de férias a Paris e à noite saía, era rapariga, saíamos à noite e depois apanhávamos o metro de manhã muito cedo. O primeiro metro, para mim, era uma coisa muito estranha, porque estava cheio de mulheres negras, africanas, afrodescendentes, que vinham a correr para o trabalho e tal. Mas porque é que estas mulheres todas vieram? Esquecia-me que a França tinha sido uma potência colonial, não me lembrava e, sobretudo, mantinha aqueles territórios que ainda hoje se mantêm ligados a França. A verdade é que esse fenómeno, atualmente, é o fenómeno que encontramos aqui. O fenómeno das mulheres que de manhã saem de casa a correr para limpar os escritórios todos, os hospitais, isto, aquilo e o outro, e que prosseguem ao longo do dia e que ao fim do dia ainda voltam a fazer esse trabalho. E é verdade que houve sucessivas levas de imigração, as primeiras, obviamente, vindas das antigas colónias, mas depois é preciso falar também das pessoas que vieram dos países de leste, da Europa Central e Oriental, que vieram e que se integraram. Têm uma boa integração. Diria que as pessoas das antigas colónias não têm uma integração tão boa como têm as dos países da Europa Central e Oriental.
E isso faz do povo português um povo racista e xenófobo?
Eu não gosto de falar de povos racistas ou xenófobos, gosto de falar de pessoas racistas ou xenófobas. Não acho que haja povos racistas, nem povos estúpidos, porque no fundo, quando fazemos uma afirmação com esse nível de generalidade, estamos um bocadinho a fazer quase a contraposição da afirmação racista, que é todos os negros são burros. Não, as coisas não se podem colocar nesses termos. Diria que persiste em termos culturais na sociedade portuguesa um enorme preconceito e um preconceito que atinge as populações africanas e afrodescendentes desvalorizando-as. Há uma desvalorização efetiva. Temos uma população afrodescendente, africana e afrodescendente, com mais de 40 anos em Portugal e a verdade é que se olhar e se vir, se pensar, por exemplo, em empresas importantes, se pensar na instituição pública portuguesa, nos dirigentes não encontram ninguém, não é? Mesmo eu fui um epifenómeno. E aquele governo em que participei foi de facto um epifenómeno, na medida em que havia uma grande representação de pessoas e de grupos sociais que não apareciam nesses lugares, em lugares de poder.
Um governo tem 60 pessoas ou menos e o Parlamento tem 230 e a representação também não é maior...
Não, nunca foi. Não gosto de usar a expressão invisibilidade, mas é indiscutível que nunca houve um olhar sobre essas comunidades e um cuidado com essas comunidades. Ou seja, essas comunidades nunca foram olhadas como comunidades nossas, pronto. Num certo sentido, elas foram-se formando, fazendo e desenvolvendo através de modelos de autoajuda, por vezes com algum apoio das autarquias do ponto de vista local. Mas diria que era preciso que o poder central tivesse um olhar sobre essas comunidades e sobre outras que vão nascendo e que existem já, vindas da Península Indostânica e de outras áreas, e que existem, que vão ficar em Portugal seguramente, e relativamente às quais vai ser preciso haver um olhar político para se perceber em que modos é que se faz a integração. Porque de outra forma, aquilo que vamos ter é um ambiente de conflito permanente.
Teve uma carreira muito intensa. O que é que atualmente estimula o quotidiano de Francisca Van Dunem?
Tantas coisas. Ler, ler, ler, muito ler. Sabe, sou muito convocada para atividades relacionadas com as comunidades africanas e afrodescendentes, pedem-me muito para fazer coisas, para estar com elas em pequenas realizações, normalmente coisas até de mulheres.
Então tem uma perceção muito viva da realidade que estávamos agora aqui a falar.
Diria que tenho uma grande aproximação à realidade que estamos aqui a falar. Portanto, há muitos coletivos de mulheres, sobretudo coletivos de mulheres, que me interpelam, que me chamam, que me pedem ajuda, com as quais vou falar e com quem estou muitas vezes. São vários. E depois, obviamente, tenho obrigações familiares e volta e meia também escrevo qualquer coisa, faço trabalho. Pedem-me para falar sobre temas, intervir em conferências e outras coisas dessa natureza. E, portanto, normalmente tenho dificuldade em dizer que não. É um drama terrível.
Para concluir, uma questão que sei que é um tema complicado para si, que causa bastante mágoa, sobre o seu irmão José e a mulher que foram vítimas da purga do 27 de maio. O atual presidente João Lourenço alegou querer reconciliar todos os angolanos, órfãos e familiares dessas vítimas, estimadas em mais de 30 mil, promovendo cerimónias fúnebres para sepultar restos mortais, supostamente, de algumas dessas pessoas assassinadas. Veio depois a saber-se que aqueles restos mortais não correspondiam ao ADN das vítimas em causa. Foi o que aconteceu com o seu irmão. Como é que encara esta posição, esta atitude do presidente de Angola?
Acho que o mais difícil, curiosamente, acho que o mais difícil foi feito. O mais difícil, em boa verdade, foi o presidente da República de Angola assumir, em nome do Estado angolano, que naquele momento tinham sido cometidos excessos. E que pessoas que tinham sido assassinadas, em boa verdade a expressão é essa, na medida em que não foram sujeitas a qualquer julgamento, não tiveram nenhuma garantia de defesa. Eram jovens, era gente muito jovem, a minha geração foi quase toda aí. E como se sabe também, passaram muitos anos até que alguém responsável em Angola tivesse a coragem de vir dizer, não, nós cedemos. E de facto o presidente fez isso. E pediu desculpa às famílias e às vítimas. A partir do momento em que o fez, pensaria que todo o outro processo seria mais fácil. Porque o mais difícil seria, para mim, a assunção política de que tinha havido ali um erro, que tinha havido um excesso. Agora, aquilo que me parece é que o método que foi utilizado para depois se identificar os cadáveres e o próprio método de reconciliação em si, do meu ponto de vista, está inquinado. Está inquinado porque falta, diria que há ali uma falha ao nível da participação das famílias, por um lado, e depois há também uma outra falha que tem a ver com alguma opacidade quanto aos métodos que estão a ser utilizados na pesquisa. Repare, posso conceber até que não se consiga saber, que não consiga saber onde foi enterrado um estudante de um determinado liceu, de uma certa universidade, que foi preso e que foi morto. Um estudante anónimo. Agora, custa-me a crer, e acho que é muito difícil conceber, que ninguém saiba ou que não se consiga encontrar ou até dizer que estão no fundo do mar, os restos mortais de duas pessoas que foram consideradas cabecilhas de um golpe de Estado. Foi disso que foram acusadas e que em nome disso foram fuziladas. Para mim, esse paradoxo permanece.
E esse processo agora não vai ser retomado? Não acredita nisso?
O processo prossegue. O processo continua e estou até em contato com o ministro da Justiça de Angola, no sentido de se identificar pessoas que, do meu ponto de vista, têm a obrigação de saber, que sabem, seguramente sabem. Houve muitos modelos de reconciliação no termo de conflitos, mas acho que se estamos a falar de reconciliação, a reconciliação implica a verdade. Implica que as pessoas falem, que venham e que digam. Não se vai julgar ninguém, não vai acontecer rigorosamente nada. Mas que as pessoas digam o que aconteceu, o que foi. Acho que nunca nos poderemos reconciliar com aquela barbaridade, mas apesar de tudo é ter a informação, saber a verdade do que aconteceu e eventualmente ter os restos mortais deles para os enterrar com dignidade. Porque, além de mais, eram pessoas que foram militantes, nomeadamente o meu irmão José, que foi muito novo militante do MPLA. Teve responsabilidades muito grandes muito cedo, teve um papel importantíssimo na tomada de poder do MPLA. Acho que aquilo que lhe estão a fazer é completamente inaceitável.
