Na entrevista TSF/DN, a coordenadora do Bloco de Esquerda critica Pedro Nuno Santos por ter mudado de opinião sobre o envolvimento da CGD para baixar os juros do crédito à habitação. No fim de semana de congresso da CGTP, Mariana Mortágua considera que “falta pluralidade” dentro da Intersindical.
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Mariana Mortágua, coordenadora do Bloco de Esquerda, economista, é a convidada de hoje da entrevista TSF/DN Especial Legislativas.
Sente que tem a vida dificultada na política por ser mulher?
Facilitada não tenho. Acho que apesar de tudo, tenho um percurso que me foi valendo alguma afirmação, que é muito diferente hoje daquela que era ao início. Mas quem disser que não há uma forma diferente de avaliar as mulheres em papéis de destaque público está a mentir.
Notou isso nas avaliações que lhe foram feitas nos debates?
Há uma tendência. E não aconteceu só comigo, aconteceu com a Catarina Martins também. Acontece com as mulheres que são aguerridas e frontais e fazem debates fortes, isso ser criticado como se fosse um defeito. É verdade que nas mulheres há uma avaliação que é diferente e isso transpareceu muitos nos comentários aos debates.
Tem dito que o voto no BE é determinante para uma solução depois de 10 de março. Em que é que um voto no BE se diferencia de um voto no PS ou no PCP?
O PS insiste em receitas que agravaram problemas. Os salários são baixos porque há uma insistência incompreensível em manter leis que pressionam o salário para baixo, que abrem novas formas de precariedade. Fala-se sobre a crise da habitação, é preciso baixar os preços da habitação. Não é na maioria absoluta e no PS que encontramos respostas, mas sabemos que no futuro, como já aconteceu no passado, a força da esquerda, a força do Bloco pode impor essas soluções e vai impor essas soluções porque essa é a única resposta para o país.
O que é que está a falhar na esquerda para surgir com intenções de voto tão pouco expressivas nesta altura?
As sondagens já provaram o que valem e como se podem enganar, e o que quero é fazer com que esta campanha seja sobre propostas e sobre soluções.
Qual é a responsabilidade da esquerda nas crises da habitação, saúde e educação que vivemos hoje?
O BE contribuiu e foi corresponsável pela governação de que há melhor memória em Portugal. Não há outra governação de que as pessoas gostem tanto, como aquilo a que se chamou a geringonça. Isso aconteceu, porque todas as expectativas foram cumpridas e porque foi possível impor ao PS soluções que ninguém estava à espera. E foi isso que permitiu sair do ram-ram da política portuguesa, foi dizer tudo aquilo que diziam que era impossível fazer, afinal conseguiu-se fazer. E isso abriu um campo de possibilidades, de esperança, de dignidade para este país, que ainda hoje deixa memória. É verdade que uma vez terminado esse acordo que foi cumprido, o PS entrou numa deriva em procura da maioria absoluta, e houve um conflito muito sério entre o BE e o PS em torno precisamente das questões da saúde. Quando se pergunta de quem é a responsabilidade da crise do SNS, é da maioria absoluta do PS, que recusou essas medidas que poderiam ter salvo a SNS.
Com o histórico que há nas leis laborais, na lei de bases de habitação, na lei de bases da saúde, vale mesmo a pena um entendimento com o PS?
Vale a pena lutar por maiorias sociais em torno de propostas que mudam o país, é por isso que vale a pena fazer política, é por isso que estamos na política, para dizer às pessoas que é possível salvar o SNS. Houve uma geração, a seguir ao 25 de Abril, que conseguiu, do nada, construir um SNS e uma escola pública universais, foi um feito inacreditável. Se fosse hoje, teria imensos arautos da desgraça, a dizer que era impossível, que ninguém conseguiria fazer. Queremos pegar nessa energia, usá-la e essa memória para dizer que é possível fazer o que não foi feito. É para estas novas soluções que queremos construir maiorias sociais. E vamos impô-las. Se o BE tiver força para isso, vai impor estas soluções no dia 10 de março, como em 2015 impusemos o aumento das pensões, o aumento do salário mínimo, e o país ficou melhor. Sempre que isto aconteceu o país melhorou.
O BE tem uma proposta para proibir a venda de casas a não residentes em Portugal, mas essa proposta precisa de uma exceção na União Europeia. Como é que se consegue isso?
Há várias derrogações e leis que são feitas com diferentes princípios de residência. O que é que é o regime do residente não habitual senão um benefício fiscal milionário que cria regras excecionais para não-residentes? Há exceções na lei que permitem sempre distinguir entre residentes e não-residentes. A diferença é que essas exceções normalmente beneficiam não-residentes muito ricos. Malta e Dinamarca lutaram por ter uma lei que protegesse os seus países e o direito à habitação. Portugal deve fazer o mesmo e deve invocar para si a mesma exceção que Malta e Dinamarca tiveram.
Usando esse precedente como força?
Usando esse precedente e um facto indesmentível: é que Portugal é o terceiro país com preços das casas mais caros em relação ao rendimento.
A direita diz que as propostas do BE para controlar as rendas podem fazer os senhorios deixarem o mercado de arrendamento. De que forma se evita isso?
Eu ainda me lembro de quando o salário mínimo ia criar um descalabro de desemprego e destruição de empresas. A alternativa a esta política é uma política de benefícios fiscais a senhorios. Ela está em vigor há anos e não resolveu o problema, porque é sempre mais rentável fazer um alojamento local do que arrendar para habitação. E é por isso que na Califórnia, em Nova Iorque, em Paris, em Berlim limitam o alojamento local de uma forma ou de outra. Os tetos às rendas não servem para uma política de congelamento de rendas como houve em Portugal em 40 anos. Essa política foi desastrosa. O que o Estado faz é balizar um mercado tentando que ele sirva o propósito da habitação.
Quer a CGD a limitar os spreads no crédito à habitação. Mas o PS diz que o Estado não pode dar essa ordem à administração da Caixa. Em que é que ficamos?
Eu ouvi o secretário-geral do PS, numa entrevista ao podcast de Daniel Oliveira, a dizer que achava que era uma ideia correta e que fazia sentido mobilizar a CGD para baixar os juros do crédito à habitação. Isto aconteceu três meses antes de o mesmo Pedro Nuno Santos ter mudado de ideias num debate que tivemos na televisão. É tão ilegal agora como era há três meses. Se consultarem o site do PS encontrarão uma declaração do primeiro-ministro a dizer que assegurou que cada município tinha um balcão da CGD. Porquê? Porque é um banco público, porque tem uma função de banco público que tem de ser cumprida.
O BE diz que a recuperação do tempo de serviço dos professores pode ser feita num ano. Que custos é que isto acarreta e como é que se financia isso?
Reformaram-se muitos milhares de professores desde o momento em que esta polémica foi criada. As próprias organizações de professores dizem que a medida não custa sequer 300 milhões de euros. Esta medida tornou-se simbólica e com toda a razão, mas impede-nos de discutir outras que é preciso para salvar a escola pública. Há uma enorme falta de professores, há professores que foram contratados sem ter formação pedagógica. Isso preocupa os pais, preocupa os outros professores. Há várias coisas que é preciso fazer na escola pública que vão além da recuperação do tempo de serviço, que é completamente integrável nas contas públicas. Há uma proposta que raramente tem sido alvo de debate, que eu acho que é importante e que tem que ver com a limitação da utilização de smartphones no 1.º e 2.º ciclos. As crianças são demasiado novas para estar sistematicamente a ser expostas a ecrãs. E os livros, assim como a alegria de brincar, devem ser elementos centrais.
Deve ser uma determinação do Ministério da Educação?
Penso que sim. Houve um momento em que se pensou que modernizar era colocar ecrãs em todo o lado. Hoje há países que começam a reverter esse processo, porque as crianças deixaram de ter contacto com os livros, com o objeto, com a escrita. E nos recreios deixaram de brincar e de socializar uns com os outros. Podemos estar a pôr em risco a capacidade de aprendizagem e de socialização.
É o caso da Suécia e de Espanha, onde há grandes debates sobre isso. Mas até agora o PS não se tem mostrado aberto a fazer essa proibição, tem remetido para a autonomia das escolas.
Sim, mas eu acho que é uma medida relativamente consensual na sociedade. Os pais podem contactar os seus filhos, pode haver telemóveis que não são smartphones. O que estamos é a criar limites de bom senso, que nos permitam proteger a sociedade e as gerações futuras.
O PS quer reter médicos no SNS para compensar o Estado pelo dispêndio que houve na sua formação. É uma boa ideia?
Os médicos já ficam retidos no SNS quando fazem a sua especialidade. Não me parece uma abordagem sensata não criar regimes que os profissionais de saúde aceitem. E aqui não estamos a falar só de médicos, mas de enfermeiros, auxiliares, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, que estão agora também a manifestar-se para que a sua carreira seja cumprida. Não faz sentido passar dois anos em guerra aberta com estes profissionais. Não é por criar uma obrigatoriedade de reter profissionais no SNS que isso os impede de sair mais à frente, se essas condições de atratividade não existirem.
Qual é a diferença entre o regime de dedicação plena que foi criado pelo PS e a dedicação exclusiva que o BE propõe?
O regime de dedicação foi imposto aos profissionais e inclui o trabalho de horas extraordinárias até a ultrapassando o limite legal. E essa é a principal razão pela qual não é aceite.
Portanto, os médicos ganham mais, mas também trabalham mais?
Muito mais horas do que aquelas que seriam necessárias e expectáveis. A proposta do BE é que o regime de exclusividade venha com um aumento de 40% do salário à cabeça, sem quaisquer critérios criados ad hoc. Sempre que o governo da maioria absoluta foi criando um novo regime para profissionais de saúde, foi complexificando bons modelos que existiam de autonomia, de remunerações, de incentivos, e tornando-os dependentes de pseudo-critérios de eficiência e de produção, que na verdade muitas vezes não dependem dos próprios médicos ou dos próprios profissionais, dependem da situação em causa, do contexto, da capacidade do hospital, e que criam uma pressão para a produção em números, que é contraproducente e é contestada pelos profissionais. O que é preciso é encontrar modelos que os profissionais aceitem porque os desejam e que sejam garantias de menos horas de trabalho. E a única forma de podermos garantir menos horas de trabalho é conseguir atrair mais profissionais para o SNS.
E acabar com os tarefeiros?
Idealmente. É um incentivo perverso.
O BE defende recuperação do controlo público da REN e dos CTT. Como se faz?
Não há muita gente que consiga defender as privatizações em Portugal. Desapareceram empresas, destruiu-se capacidade tecnológica. Portugal deve ter controlo estratégico sobre setores que são importantes para a economia.
Mas como é que se faz a recuperação desse controlo?
Temos dito que uma das formas de fazer é comprar as empresas ao valor que elas custam hoje em Bolsa.
Mas isso fará disparar as ações em Bolsa.
Não temos outra forma de calcular este preço e queremos ser transparentes sobre as nossas propostas. Cada governo em particular saberá qual é a estratégia para negociar e conseguir reconquistar poder estratégico nas empresas.
No caso da TAP, o BE aceita a privatização?
A TAP não faz sentido nenhum ser privatizada. Já ouvi a responsável pelo programa do PS dizer que seria muito difícil privatizar a TAP mantendo o hub. É uma ilusão, nunca foi possível.
Acredita que com o Pedro Nuno Santos haverá uma inversão?
Se houver uma votação forte no BE e uma maioria com a esquerda, é possível impor medidas que protegem o país. Não faz sentido, depois do investimento público que foi feito para salvar a TAP, depois do desastre que foi a gestão privada da TAP, voltar a cometer o mesmo erro.
O que falta ao BE para ter influência sindical?
O BE tem muita influência sindical e um trabalho muito profundo sobre novas formas de precariedade e exploração laboral, as plataformas são um desses exemplos. Levamos esse trabalho sindical muito a sério, e o trabalho das comissões de trabalhadores, dos sindicatos, de novas formas de representação de trabalhadores e de luta sindical. Não deixamos de fazer uma crítica à falta de pluralidade dentro da CGTP. E essa é uma crítica que é reconhecida.
É uma crítica ao PCP?
É uma crítica à gestão da CGTP que impede uma maior pluralidade numa central sindical, que deve representar todos os trabalhadores e integrar a diversidade que existe à esquerda das pessoas do mundo do trabalho.
O que é preciso mudar na estratégia do BE para ter uma maior implantação autárquica?
O BE tem aprendido muito na sua presença autárquica e ela tem-se enraizado. Temos vereações importantes em Lisboa, no Porto, em Almada. São autarquias muito importantes. Não temos o enraizamento autárquico que outros partidos têm, fruto também da nossa história… E certamente não beneficiamos de movimentos como outros partidos têm de transferências em massa motivadas por várias coisas, mas nem sempre ideais políticos. E isso é bom, queremos manter essa coerência política.
A extrema-direita está a crescer em todo o mundo. Há alguma responsabilidade da esquerda nisto?
Recuso em absoluto o diagnóstico de que a culpa de a extrema-direita crescer é da esquerda. Basta olhar para a direita tradicional e ver a forma como se desintegrou e como vai cedendo aqui e ali, como foi incapaz de se reconstituir. A reorganização da direita é uma resposta à falência moral e económica do neoliberalismo. A seguir à crise económica de 2008, que abanou as fundações da ortodoxia neoliberal, a direita entrou num período de falência, de falência moral, de falência social e reorganizou-se com formas muito mais violentas para proteger os mesmos de sempre.
Não houve também uma mudança na esquerda, com as questões de identidade a ocupar o espaço da luta de classes?
As discussões de identidade são sempre trazidas à baila pela extrema-direita. Eu não sou mais nem menos antirracista do que era antes de a extrema-direita ter aparecido, não sou mais nem menos feminista, nem luto mais nem menos pelos direitos das pessoas LGBT. Nós defendemos os direitos de toda a gente porque acreditamos numa sociedade igual, que respeita as pessoas, que não tem medo do que é diferente, não tem ódio por aquilo que é diferente. Quando chega a altura de falar sobre contratação coletiva, e sobre trabalhadores por turnos e sobre salários, é a esquerda que lá está.
Está arrependida de ter trazido a sua avó para a campanha?
Essa campanha de extrema-direita vai sendo reeditada por partidos que defendem o retorno da lei Cristas, que defendem o retorno de uma política que põe medo às pessoas por aquilo que pode acontecer. Não deixo de achar caricato que essa mesma extrema-direita crie um evento porque diz que foi recebida com tiros numa iniciativa de campanha, quando na verdade era uma motorizada que estava no próprio cortejo de campanha a fazer barulhos. Isto dá-nos uma ideia de como é distorcida a realidade.
Mas foi um erro trazer uma questão pessoal para a campanha?
O que disse e mantenho é a verdade sobre essa lei. A minha avó viveu 69 anos na mesma casa, aos 80 descobriu que aos 85 a renda podia aumentar. E, como tanta gente na sua situação, teve medo por causa de uma lei que era cruel com as pessoas. Estou aqui para defender o direito à habitação, dos idosos, dos mais jovens e de toda a gente que quer ter uma casa e hoje enfrenta esse monstro que é a crise da habitação.