Insultos no Parlamento? "Se acontecerem têm de ir para lá da mera denúncia pública"
Na Grande Entrevista TSF-JN, José Pedro Aguiar-Branco garante que nunca ouviu insultos no Parlamento, como aqueles denunciados publicamente pela deputada Isabel Moreira que falou em "injúrias permanentes". O Presidente da Assembleia defende que esses casos lhe devem ser reportados.
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Este regresso ao Parlamento acontece depois de cinco anos, saiu em 2019, tinha estado aqui durante 14 anos. Esta casa para onde regressa é muito diferente daquela que deixou?
É diferente, naturalmente é diferente, até porque há uma grande renovação dos deputados, também na faixa etária dos deputados, de um momento para o outro a gente nota que começa a estar top 10 dos mais velhos e, portanto, isso só por si marca uma diferença de hábitos, de costumes, de formas de intervir . E também um parlamento que tem, como eu referi, uma fragmentação grande, ou seja, que é a expressão eleitoral do povo português, Não devemos dramatizar, é essa a vontade, foi o que os resultados eleitorais traduziram e, naturalmente, um Parlamento com estas características é diferente também no esforço que é preciso fazer para gerir as tensões, gerir as emoções, permitir o debate democrático e tentar obter consensos. Diria que é preciso mais esforço hoje do que era no passado para que todas estas coisas aconteçam.
Em maio a deputada Isabel Moreira, do PS, acusou alguns Deputados do Chega de transformarem o Parlamento, e vou citar, num “lugar infernal”, com “injúrias permanentes”. Já alguma vez testemunhou algo que vá nesse sentido ou se já lhe foi relatado?
Quando a Sr.ª deputada fez essa referência também disse que quase sempre, era com os microfones desligados e, portanto, que não era audível para lá muito entre os interlocutores e isso, no tempo em que eu fui Presidente da Assembleia da República, efetivamente nunca tive a audição desse tipo de situações. Não quer dizer que elas não existam, mas não chegam à mesa, não se ouve. Os senhores são também jornalistas, sabem que a acústica do hemiciclo muitas vezes não torna percetível, nem fácil, esse tipo de apartes e, portanto, não chegam. Aquilo que eu não tenho a mínima dúvida, é um, acontecendo, que devem ser reportados ao Presidente da Assembleia da República para que no seu exercício possa minimizar e criar as condições para que essas situações não aconteçam, até com chamadas de atenção, se for no plenário com as respetivas advertências e que tente promover uma pedagogia para que essas coisas não aconteçam. Eu resolvi, como é óbvio, se cabe no âmbito regimental, precisamente nos poderes que eu tenho, para não só fazer má advertência, para que se a situação for perturbadora do debate democrático, eu possa até, em determinadas circunstâncias, retirar a palavra. É aí que o poder do Presidente da Assembleia da República existe. No regimento, que é tudo o que possa perturbar o debate democrático, a livre expressão de cada um, que permita ou que impeça que a igualdade de armas exista, é precisamente a minha interpretação do famoso artigo 89 do regimento que me permite eu intervir para que o debate democrático não seja condicionado de uma forma que seria inadmissível na casa da democracia.
Estamos a falar do que se passa dentro da sala das sessões, mas existem também relatos de deputadas e deputados sobre o que se passa, por exemplo, nos corredores. Como é que se pode garantir que não são cruzadas essas barreiras na elementar convivilidade entre os deputados?
Se as situações atingirem as dimensões de alguma ilicitude que obrigue ou que possa permitir que haja até as queixas respetivas do ponto de vista disciplinar ou criminal, elas devem acontecer, não é possível denunciar do ponto de vista público e não chegarem sequer ao Presidente da Assembleia da República de uma forma formal. Temos de ter aqui a consequência daquilo que se diz e a consequência tem de ser a de apresentar ao Presidente da Assembleia da República para que possa promover, ou do ponto de vista de alguma intervenção mais processual, ou por pedagogia de uma boa influência para que essas situações não aconteçam. Tem a ver também com a educação, tem a ver com o civismo, tem a ver com a urbanidade. Eu não tenho conhecimento direto, a mim nunca me aconteceu, mas não estou a pôr em causa que essas situações não aconteçam, mas se acontecerem eles têm de também ir para lá do patamar da mera denúncia pública para que possa haver consequências.
Tem dito que não quer estar nesse papel de censor, e que defende que o debate parlamentar deve existir com uma igualdade de armas políticas. De qualquer modo, vivemos um tempo de polarização muito grande, não só aqui no país como no mundo, e ainda esta semana, Durão Barroso utilizava a expressão da “brutalização” da linguagem política. Não pensa que, de certa forma, o Parlamento pode também, com o ruído e a forma como tem decorrido o debate, nos últimos anos, contribuir para essa brutalização da vida política?
Mas repare, tudo isso tem um fator prévio que é a dimensão educacional, cívica de cada um de nós e dos eleitores. Ao votarem em alguém para os representar na Assembleia, nós não podemos contornar as regras da democracia ou achar que elas só existem quando elas são boas relativamente àquilo que nós pensamos. A democracia, o voto, a soberania popular é o primado maior. E quando alguma situação, nomeadamente na Assembleia da República, seja nos contornos que está a dizer, porque são desagradáveis, feios ou inapropriados, aquilo que tem a ver com essa dimensão deve ser também o eleitor, o votante, o português, que censure esse discurso político no ato eleitoral seguinte. Porque é muito importante que cada um de nós saiba, e que não seja até muitas vezes, digamos, empacotado na campanha eleitoral por técnicas de comunicação que às vezes fazem parecer uma coisa quando ela é outra, que quando estão no exercício de um mandato mais nobre que há, que é representarmos os nossos eleitores, o eleitor, que em democracia também tem de estar atento, tem de ouvir, tem de ver, a democracia dá trabalho, faça o seu juízo de valor e que depois, no voto, faça a censura política a quem o representam mal, com quem não se identificou na forma de estar, e isto é a democracia a funcionar. Não é o Presidente da Assembleia da República, não são os senhores jornalistas, não é ninguém que se pode substituir ao povo na escolha dos seus representantes. Tenho dito isto muitas vezes, a democracia é exigente, dá trabalho, obriga-nos a estar atentos a todos, mas é a melhor forma de nós nos entendermos que a alternativa, como vemos que está no mundo, é a alternativa da arma mesmo e não da arma da palavra. Portanto, é este quadro que eu acho que é importante nós sempre termos. Não é o Presidente da Assembleia da República que deve saber o que é que está certo ou errado naquilo que o povo português deve escolher. Às vezes até pasmo, como acham, ou podem achar, que pode haver um censor, alguém que é a moral do que deve ser a escolha do povo português. Não tenho essa, sou mais humilde eu, e, portanto, acho que isso deve competir à soberania do povo português. E mais, eu não passo um atestado de menoridade a achar que o povo português não tem nem os atributos, nem a competência, nem a inteligência, nem a sabedoria para saber distinguir aquilo que deve ser o trigo do joio em relação a quem no Parlamento exerce o seu mandato de representação.
Os deputados e o Parlamento devem ser um exemplo, até tendo em conta que muitas escolas visitam o plenário? Deve ou não haver alguma diferença entre uma conversa de café, por exemplo, ou um debate na Assembleia?
Colocando as questões do que eu acho que deve ser, é evidente que eu acho que deve ser como diz, eu acho que nós, e eu esforço-me por isso, é evidente que se nós estivermos num espaço que é sujeito a um escrutínio muito grande, que também pode ser um exemplo da forma como nós vemos o exercício da democracia, que também tem a sua dimensão pedagógica e que devemos dignificar as instituições e que as instituições, por excelência até, da representação do povo português, que é a Assembleia da República. E eu farei sempre, no exercício da minha função como Presidente da Assembleia da República, um esforço para que isso aconteça e eu próprio tentarei dar esse exemplo. Acho que as lideranças, pelo exemplo, são as melhores, para que os outros se possam rever e até lhe digo que acho que isso é importante para que os eleitores se aproximem dos seus eleitos. Nunca podemos esconder a realidade, nem esconder, ou camuflar, ou nos enganarmos quanto à democracia. A democracia é que o povo Os eleitores escolhem os seus representantes para a Assembleia da República e escolhem aqueles que consideram melhores para poderem estar a representar. E, portanto, são eles que depois têm de fazer a devida avaliação e que não se revendo, alterem o panorama quer das pessoas, a qualidade ou a competência das pessoas, quer das opções políticas. Agora, se me pergunta se algumas situações eram melhor que não tivessem acontecido no meu critério, eu acho que sim, e tento chamar a atenção para isso. Agora, é a realidade.
A que situações se refere? Aquelas ocorridas na sala das sessões, por exemplo?
Todas as que estão a dizer. Só o facto de nos estarem a fazer perguntas relativamente a algumas situações que acontecem ou podem acontecer nos corredores, etc., é evidente que eu acho que não deviam acontecer, acho que a minha forma de ver a urbanidade não é essa e, portanto, se deve combater todas essas situações. Acho que sim, sim, sim. Agora, devo-lhe dizer, aquilo que eram as vozes que achavam que esta situação no Parlamento ia ser muito difícil, que era impossível trabalhar-se com este quadro, está a ser desmentido dia a dia. Ou seja, entre o dia em que houve a eleição. E o debate do Estado na Nação, acho que há uma evolução qualitativa enorme, acho que o Parlamento tem trabalhado muito, tem havido as mais diversas votações, Chega a votar situações do PS, do PSD, a votar...
Várias geometrias variáveis…
É a democracia também a fazer os seus momentos de consensos, tem trabalhado muito, as comissões permanentes trabalham, as comissões de inquérito também o trabalham, com mais ou menos polémica estão a exercer a sua função de fiscalização, a produção legislativa também é bastante elevada, os debates têm acontecido E acontecem, com alguns momentos de tensão, acontecem, concluem-se, há uma relação democrática saudável, portanto eu também não estou a diabolizar, nem diabolizo, e acho que entre aquilo que eram as vozes que apontavam para quase uma incapacidade de o Parlamento funcionar e aquilo que estamos a viver e que eu tenho a certeza que vai evoluir nesse sentido, acho que há uma dimensão grande e que é esperançosa.
No discurso de posse formulou votos de que “a política não separe o que os eleitores nesta casa quiseram unir porque estão aqui para os próximos quatro anos.” Pelo que ouviu no debate sobre o Estado da Nação acredita que a legislatura será cumprida? Temos ouvido o Primeiro-Ministro insistir no desafio para que as oposições avancem com uma moção de censura. O PS diz que não receia eleições. Isto tudo é um bluff político ou existe aqui um aroma pré-eleitoral?
Eu acho que o povo português não quer eleições antecipadas. É a minha análise geral em relação à circunstância política.É legítimo que os partidos políticos e os grupos parlamentares façam a ação política que melhor sirva dentro do que é a visão do interesse nacional que cada um tem. Faz parte, é relevante e eu acredito na seriedade com que o fazem. Há posições diferentes, há ideias diferentes, há medidas diferentes, mas a verdade é que o povo português votou para um mandato de 4 anos, para alguém governar durante 4 anos e para alguém ser oposição durante 4 anos. E mesmo com governos minoritários (não só no passado isso já se demonstrou e por toda a Europa também isso acontece), é normal que possam durar uma legislatura. É preciso obter consensos. A forma de obter consensos não é necessariamente estar a votar favoravelmente tudo. Há um voto na democracia que se chama abstenção. A abstenção permite que, precisamente não estando de acordo, não se deixe de viabilizar que alguém que foi legitimado para governar governe, é um exercício crítico também muito exigente. É mais fácil dizer sim e não, do que dizer sim aqui, não ali, talvez aqui. É muito mais exigente, mas dá mais trabalho, mas é isso que se espera, que quer o Governo faça no exercício da sua governação, quer a oposição faça no exercício do seu muito nobre tamanho, ou a sua muito nobre função de fiscalizar e tentar alterar aquilo que possa ser alterado em benefício do país. Portanto, eu vejo sem dramatismo e com normalidade que haja esse debate que está a acontecer entre os grupos parlamentares e os líderes políticos, mas eu acredito também que no momento em que seja necessário permitir que o Governo neste caso mais um ano, com um orçamento aprovado, que isso possa acontecer e acho que o povo português estará atento a esse esforço de consenso e que ficará satisfeito se houver um consenso.
Nem que seja com uma abstenção violenta, como já aconteceu noutras alturas…
Acho que a Constituição e o sistema eleitoral diz: “votar a favor, contra ou abster-se”. Eu nunca pus a sujeição em nenhuma votação na Assembleia. “É uma abstenção violenta ou uma abstenção light? É um voto a favor convencido ou só, digamos assim, tolerante?” Não existe isso.
As comissões de inquérito como a da TAP ou mais recentemente a chamada “das gémeas”, prestigiam o Parlamento?
Uma comissão de inquérito é sempre prestigiante para o Parlamento. É um ato maior, normalmente é aquele que até é mais apelativo, quer para a comunicação social, quer para os portugueses em geral. E por via disso, até porque é importante, é um momento grande do Parlamento e da ação democrática. Acho que, como também disse, temos de ter sempre bem a consciência que as comissões de inquérito não são tribunais. não se substituem aos tribunais. E às vezes, até quando há muitos juristas nas comissões de inquérito, há essa tentação e brota de cada um dos seus deputados, às vezes há mais dificuldade em saber distinguir. Mas é muito importante que se distinga. A Comissão de inquérito é um órgão político, não é um órgão judicial. E embora tenha mecanismos que permitam ir mais longe e alguns deles que se possam aproximar da dimensão de uma investigação, quando elas querem ir para lá de alguns limites, é inclusivamente necessário pedir a intervenção dos órgãos judiciais, nomeadamente do Ministério Público, autorização para isto ou para aquilo. E isto é o balizamento que eu acho que é importante que aconteça.
E a conclusão desse raciocínio é que deve ser reavaliada de alguma forma, da maneira como estas comissões funcionam ou não?
Não vejo necessidade porque elas têm um quadro legal. Embora haja sempre necessidade, como até houve recentemente por ser uma novidade, de clarificar. E eu próprio pedi num despacho para clarificar algumas situações. As leis nunca são perfeitas ou nunca são 100 % claras, por isso existem várias interpretações, não é possível nós fazermos uma alteração que leve a que nunca mais haja dúvidas. Não é possível. Mudar sempre com grande ritmo regras também tem mostrado que não é muito vantajoso. Nós íamos clarificando algumas situações, estas são novas, eu pedi essa clarificação recentemente ao Conselho Consultivo do Ministério Público, e acho que com isso nós podemos ir balizando e compreendendo melhor como nos movemos, sempre com uma linha de rumo que eu acho que essa é a orientadora. Nós não somos um tribunal, nós temos uma reação política, devemos ter o máximo de informação, o máximo de inteligência. Aliás, como sabe, muitas vezes as conclusões que se podem retirar de uma comissão podem ser remetidas ao Ministério Público para, havendo em algum momento de indício criminal, o Ministério Público, que é quem tem quem tem a titularidade da ação penal, o possa fazer. E acho que isto é um quadro mental que deve estar sempre muito presente aos seus Deputados e essa pedagogia deve ser feita diariamente.
Fez um pedido à Procuradoria sobre o acesso dos Deputados a comunicações entre o Presidente da República e o filho. O Jornal Expresso deu, entretanto, conta de um parecer de um auditor da Assembleia que considerava que os cidadãos são obrigados a fornecer comunicações privadas às comissões de inquérito. O que espera obter com esta clarificação?
É uma visão, lá está …eu tenho muitas dúvidas. que essa seja a posição jurídica ou constitucional correta. E como tenho dúvidas que essa seja a posição jurídica ou constitucional correta, ao invés de eu logo estar a pronunciar-me de uma forma definitiva, porque acho que havendo um parecer do auditor, era importante também terem conta o mesmo, pedi a clarificação que a lei permite, do ponto de vista consultivo, (até porque o Ministério Público tem a titularidade da ação penal), pedi que emitisse esse parecer, que será clarificador, orientador e que nos permitirá a todos, saber se isso cabe, ou não, no âmbito dos poderes de uma comissão de inquérito. Ainda para mais, quando essa situação se reporta a um outro órgão de soberania, ou a um titular de um outro órgão de soberania, seja este Presidente ou outro qualquer, onde até, e como nós soubemos ainda há bem pouco tempo, o exercício de uma ação criminal em relação a um órgão de soberania como o Sr. Presidente da Assembleia da República, tem contornos constitucionais que obrigam, por exemplo, a uma maioria qualificada na Assembleia, que não existiu para uma eventual ação crime que foi pretendido instaurar relativamente a se tinha cometido ou não uma traição à pátria. Ora, se essa particularidade existe em relação a tudo que envolve uma dimensão que tem contornos de investigação criminal, em relação à presença da lei pública, este, por maioria da razão, também o tem. E, portanto, seria assim um bocadinho estranho que para uma situação houvesse tanta exigência e para outra pudesse haver uma dimensão mais fácil ou simples de se conseguir esse tipo de documentação ou de informação de prova. Portanto, acho que isto é sensível e eu acho que para estarmos todos tranquilos, até porque há consequências relativamente à responsabilidade do Estado quando pratica atos que não sejam conformes à lei ou à Constituição
