Isabel do Carmo sobre o 25 de Novembro: "Fomos traídos pela direção do PCP, era de esperar que o Cunhal traísse"
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Em entrevista à TSF, a médica e revolucionária acusa o líder histórico do PCP de ter recuado nos acontecimentos do 25 de Novembro de 1975. Recorda os tempos em que “social-democrata” era um insulto e, sem arrependimentos pelo passado, defende que o combate à burocracia pode ser uma bandeira da esquerda.
"Que fique bem claro que não havia intenções de um golpe da esquerda", sublinha, já na hora da despedida. Para trás ficaram duas horas de conversa que foram muito além do antes e depois da data que serviu de desculpa ao encontro.
“Estou a falar assim porque eu vivi muito isto”, afirma numa das vezes em que fecha os olhos a recordar a própria vida. Houve conspirações, manifestações, prisões, insultos a um chefe de Estado, manifestações, conspirações, uma loira e uma morena “espampanantes” num descapotável - “isto aqui é que parece um filme” - num país a ferver.
O 25 de Novembro foi um golpe? Foi um contragolpe? Foi uma intentona? Foi o quê, afinal?
Eu acho que o 25 de Novembro até é fácil de explicar. Mais fácil do que aquilo que parece, não é misterioso. Havia realmente um ambiente insurrecional no país. Eu digo insurrecional para caracterizar aquilo que eram alguns concelhos que tinham armas e o desejo de lutar contra aquilo que foi o sexto Governo do Pinheiro de Azevedo. Já em setembro, eu própria e pessoas ligadas a mim e a pessoas do MES (Movimento de Esquerda Socialista) tínhamos ido a uma reunião no Palácio Foz, onde estava o Otelo, onde estava o Pinto Soares, generais, na ideia de que os militares mais à esquerda tivessem uma atitude de avanço em relação ao que se estava a passar nesse governo. Ainda neste dia, em setembro, fomos até ao Palácio de Belém, onde o Pinheiro de Azevedo estava a substituir o Costa Gomes, que estava no estrangeiro e o Otelo foi lá ter. O Pinheiro Azevedo foi extremamente agressivo para nós, particularmente para mim. Eu respondi-lhe na mesma moeda e ele pôs-me o processo a que eu vim a responder mais tarde. O Pinheiro de Azevedo para calar a Renascença teve de pôr uma bomba no emissor e mandou os soldados ocupar as rádios que se viraram ao contrário. Viraram a favor da esquerda revolucionária. Um dos insultos do Pinheiro de Azevedo foi que eles tinham sido pervertidos pelas raparigas, pelas mulheres da esquerda, tal como eu fazia isso com os oficiais. Esse foi o insulto, em termos mais duros, e eu respondi também em termos duros. Mas em agosto já estava a ser preparado aquilo que veio a ser um golpe militar com toda à direita e indo daquilo que se pode chamar esquerda até ao Partido Socialista e ao Grupo dos Nove, dentro das Forças Armadas. Portanto, isso estava até preparado desde setembro. Consta que houve também, pelo menos inicialmente, algum apoio do MDLP, dos grupos de extrema-direita. Esses estavam organizados a partir de Espanha com a presença de oficiais portugueses. Isso também está documentado, até está fotografada uma das reuniões, portanto, eles estavam a preparar, de facto, um golpe. Há uma tentativa da extrema-direita de spinolistas de serem eles a comandar o golpe e terá havido aí um papel do Vasco Lourenço e do (Ramalho) Eanes, no sentido de não ir nessa direção, mas que estavam a organizar-se, estavam. Portanto, o 25 de Novembro é uma organização da direita militar e do Grupo dos Nove. Naturalmente que com esse ambiente, a esquerda começou a organizar-se no sentido da defesa e havia grupos, de facto, com armas na cintura industrial de Lisboa. As brigadas tinham-se separado do PRP (Partido Revolucionário do Proletariado), portanto havia pessoas nas brigadas, havia grupos do PC, de certeza, havia trabalhadores organizados armados a prevenir aquilo que se estava a ver que se estava a desenrolar. Eu própria fui ter uma reunião com os fuzileiros do lado de lá. Tive uma reunião em Monsanto com os sargentos da Força Aérea. Mas eram reuniões que não eram preparatórias de um golpe. Eram reuniões para consciencializar de que o projeto que havia deste país ser um país com uma organização popular e socialista, não ser transformado. Mas ninguém estava organizado para golpe nenhum. Não houve golpe nenhum da esquerda e da extrema-esquerda. E posso afirmá-lo porque não só tinha conhecimento da existência desses grupos de defesa, digamos, como tinha conhecimento, com responsáveis, dos vários quartéis que rodeavam de Lisboa. No dia 25 de Novembro, levanta-se a ideia de que vai haver um golpe de extrema-esquerda, os oficiais dos Nove e mais à direita tomam conta das situações militares e da parte das unidades militares revolucionárias, não houve nenhuma movimentação. Eu naquela altura tinha conhecimento de quem estava e como estava. No forte de Almada, o Luz foi muito pressionado pela população da Almada, que foi mesmo até ao forte para pegarem em armas, no sentido de defenderem aquilo que eles consideravam que deviam defender, que era as comissões de moradores e o desenvolvimento de uma democracia mais popular. O Luz (capitão) escondeu as armas dentro do único sítio onde podia esconder que era dentro da prisão, fechou à chave e ficou com a chave. Setúbal estava também indecisa e ficaram paralisados, ficaram parados, sem atuar. Estremoz, que podia vir para cima, estava na mesma expectativa. A meio do processo, há uma figura que eu sei quem é, mas não vou dizer o nome, da estrutura hierárquica da Marinha que vai aos fuzileiros e diz “parem aí".
Porque é que os paraquedistas saem?
É uma questão puramente militar. O levantamento de Tancos foi a lebre. E aí há algum mistério. Quem é que contactou o Pessoa? Por que é que o Costa Martins vem para o COPCOM (Comando Operacional do Continente)? Porque aquilo que o Otelo me conta é que não teve conhecimento da vinda do Costa Martins para o COPCOM. Viu o Costa Martins e perguntou 'o que estás aqui a fazer?' e ele diz-lhe que foi mandado para lá pela Força Aérea. Esta lebre que é o Levantamento de Tancos justifica a tomada de poder militar da parte daqueles que estavam organizados anteriormente. No decurso disto, embora houvesse, de facto, esta cintura industrial com grupos, a meio da noite, o Cunhal diz aos grupos: 'Podem ir para casa porque o Otelo já foi para casa.' Esta atitude do Cunhal é típica de todo o percurso de vida do Cunhal, enquanto dirigente do PC, quase desde o pós-guerra que é: mandar avançar e, no momento de avançar, dizer 'parem aí'.
E o PCP não podia cair na tentação de aproveitar para fazer um golpe, mesmo que fosse contra a vontade da União Soviética?
Isso não se passou. O PCP não quis fazer golpe nenhum. E isto está publicado pelo Nuno Brederode dos Santos. Em setembro, houve um encontro entre o Melo Antunes e o Cunhal, preparado pelo Nuno que lhes cedeu a casa para se reunirem. É aí que fica estabelecido que seja qual for o avanço que os militares ou grupos façam naquele dia 24 para 25, seja qual for o avanço, o PC trava. E assim foi. Portanto, o Cunhal, de facto, travou e instala-se o poder que corresponde ao poder dos Nove, do General Eanes e mandam prender todos os oficiais com responsabilidades, nomeadamente do COPCOM. Portanto, os oficiais que estavam no COPCOM são todos presos e vão para Custóias, eles não estavam a fazer nenhum levantamento armado. Eles eram supostos cabeças de um levantamento armado. Estabelece- se aquilo a que se veio a chamar democracia. Digamos que não foi um golpe de extrema-direita, não foi uma “pinochetada”. Eu e Carlos Antunes tivemos dois processos militares, logo em dezembro. Eu tive um de liberdade de imprensa, porque escrevi qualquer coisa que o Governo entendeu que era crime de liberdade de imprensa e tive um processo nessa altura, escondi-me e esse processo depois não foi para a frente. Depois deu-se toda a evolução no sentido de combater as pessoas de esquerda, as pessoas de esquerda saírem dos sítios onde tinham responsabilidades. Houve um golpe em janeiro de 76, no Porto, contra a Cooperativa Árvore, e o país virou no sentido daquilo a que chamaram democracia. A posição da União Soviética não foi homogénea. O centro União Soviética era completamente contra qualquer espécie de golpe e estava pouco interessada nisso, aqui na embaixada, havia quem não tivesse essa posição, mas não teve força suficiente. A embaixada cubana era também a favor de uma evolução no sentido de uma revolução socialista aqui. Isso aí também tenho a certeza. O Otelo achava que ia haver uma guerra civil e daí o seu recuo. Eu não tenho a certeza. Haver um confronto no país, podia haver, podia não haver, não é? É uma interrogação com que ficamos…
E depois?
Depois entramos em contraciclo. Porque estabelece-se a chamada democracia liberal. O nome liberal está completamente queimado e com razão. E ainda há no Parlamento uma maioria, digamos, de esquerda, capaz de apoiar alguma legislação no sentido do estado social, mas entretanto existiu o Reagan e a Thatcher, 1979, 1980. E a partir daí, toda a democracia portuguesa, até quase a 2000, é impregnada do espírito neoliberal. E tudo o que que foram tentativas de manter o estado social foi em cima de governos completamente neoliberais, a favor das coisas privadas e um PS titubeante, com o pé cá e outro lado lá. E é a nossa história, depois por aí fora. Com o estado social a manter se na educação e na saúde, apesar de tudo com legislação nesse sentido, com grandes conquistas do 25 de Abril a manterem-se, como seja a alfabetização de toda a toda a população, mas foram essas as consequências do triunfo do 25 de Novembro. E assim nos mantivemos. Depois, em 78, houve 29 presos do PRP. Eu e o Carlos Antunes estivemos quatro anos presos, saímos por excesso de prisão preventiva. Diz-se muito que nós saímos amnistiados ou perdoados. Não, nós não tivemos nenhum perdão, nem nenhuma amnistia. Até o próprio General Eanes, que se empenhou na nossa libertação, de vez em quando, diz isso porque ele próprio está esquecido. Não, nós saímos por excesso de prisão preventiva. Portanto, a esquerda revolucionária ficou amordaçada. Nós ainda fizemos muitas assembleias durante 76, ainda fizemos comícios da parte MES que tinha connosco na altura do 25 de Novembro, uma direção político-militar comum. As pessoas, não vou dizer os nomes das pessoas do MES, eles evoluíram como evoluíram. Nós tínhamos organizações de venda dos produtos da reforma agrária. Isto tudo era um bocadinho ingénuo, não é? O Carlos Antunes não acreditava muito nestas coisas, dizia que era a política do repolho. Porque, de facto, pensar que aquelas estruturas podiam viver de uma venda completamente inorgânica, mas era muita! E que sem terem crédito nos bancos para investir era de facto um bocado ingénuo, como foram já muitas revoluções, não é? Ingénuas, mas que depois têm consequências.
Como é que passou o dia 25 de Novembro?
Passei o dia 25 escondida numa casa onde estava eu, estavam dirigentes do MES e estava um militar de grandes responsabilidades. Estivemos à espera. Tínhamos duas camaradas, uma do MES, outra do PRP, que eram muito espampanantes e que tinham um descapotável e, portanto, ninguém ia desconfiar daquelas senhoras. Eram elas que faziam as ligações, iam e saíam, uma loira, outra morena. Enfim, isto aqui é que parece um filme e andavam de um lado para o outro a fazer as ligações e nunca ninguém desconfiou delas. Depois, os oficiais foram presos e nós voltamos à sede do PRP, na Rua Castilho.
Antes, ainda houve muitas manifestações, por exemplo, a dos Soldados Unidos Vencerão (SUV). Em setembro, ainda acreditava que a revolução era possível?
Eu acreditei sempre, mas é o que lhe digo: eu sou uma perigosa voluntarista, como hoje ainda continuo. Hoje só quem é parvo é que pode pensar que pode haver qualquer reviravolta. Mas o SUV foi uma coisa magnífica. Foi uma coisa emocionante e, lá está, foi uma coisa independente. Eu fui ver a manifestação do SUV, mas não fui integrar a manifestação porque aquilo eram jovens soldados. Os Soldados Unidos Vencerão, de facto, tinham muita gente do PRP, muita gente na direção e muita gente incorporada. Eu também tenho uma boa fotografia na manifestação dos camponeses. Está uma camponesa à minha frente, que era uma mulher notável de uma ocupação do Ribatejo e está de punho erguido. Tem, sei eu porque ela me mostrou, uma algibeira cheia de canivetes. E depois também houve a manifestação da FUP, foi o Carlos Antunes que esteve nas reuniões de organização. A primeira reunião inclui toda a gente, incluindo o PC, com muitos telefonemas do Carlos Brito, que é uma pessoa que eu estimo imenso, mas muitos telefonemas do Carlos Brito que ia lá fora e voltava para receber ordens, acho eu, e estavam todos os partidos à esquerda. Esta ideia era resistir ao avanço evidente da direita que estava a existir e há uma manifestação da FUP onde o PC já não está. Vamos até Belém e é engraçado o insulto que existia para o Costa Gomes. Era “social-democrata”, era um insulto ser social-democrata. Quem nos dera agora a nós que o PS fosse um verdadeiro social-democrata. A viragem que houve no mundo na Europa é extraordinária, mas aí é era um insulto. Poucos dias depois eu entrei num restaurante popular que havia Rua da Escola Politécnica, estava Costa Gomes com o seu grupo e a mulher e ele diz: "Eu não sou social-democrata”. É incrível, isto é um bocado anedótico, mas é verdade. Em que espírito é que nós estávamos. Virou tanto que agora as posições do PCE do Bloco não passam de social-democratas. Não estou a dizer isso como insulto. Estou a dizer é que as condições objetivas não permitem que eles sejam mais do que social-democratas, que é defender o estado social.
Em algum momento se sentiu traída?
Eu acho que nós fomos traídos pelo PC, pela direção do PC. Não digo pelos militantes, mas pela direção do PC. Era expectável que o Cunhal traísse. Já tinha traído durante a FUP e era o espírito dele e foi sempre. E, portanto, eu acho que sim, que ele traiu acompanhado pela direção toda, com certeza. Eu entrevistei o Raimundo para o meu livro “Luta Armada” e tanto o Raimundo como o Carlos Antunes são bocas fechadas em relação ao que eles sabiam de dentro enquanto funcionários do PC. Eu nunca soube a composição da reunião em que o Carlos Antunes esteve, em Paris, que depois se levou ao afastamento dele e o Raimundo Narciso, que depois saiu e foi perseguido pelo PC nunca me deu detalhes também destas coisas e ele era o responsável pelo setor militar. É uma questão de honra. Interessante. Eu não sei a quem dentro da direção do PC acompanhou o Cunhal nesta atitude. Sei que o Jaime Serra que era o responsável pela ARA (Ação Revolucionária Armada), com o Raimundo Narciso, chegou a ir à direção do PRP para conjugar ações. E um dia, já muito depois disso, estivemos juntos numa situação qualquer e ele disse-me, “nós podíamos ser estados juntos.” É uma frase que me ficou. Eu fui ao velório do Jaime Serra, sem corpo de segurança… [risos]. Estava lá a direção toda do PC. E poderá ter havido ali vozes diferentes. Agora o responsável é o Cunhal, como foi o Cunhal responsável no recuo da tentativa de golpe que houve em Angola, no 27 de maio. Isso é realmente qualquer coisa que eu escrevi nesse meu livro Luta Armada, que é uma atitude permanente, mas que sacrifica pessoas. Em Angola, sacrificou muita gente. Aqui não, mas a traição foi essa.
Não foram os militares que vos faltaram?
Não. Eu acho que eles podiam de uma forma autónoma ter avançado. Eles acham que não. Acham que não, que lhes faltou uma direção. Se o Otelo quisesse tinha havido uma resistência e o COPCOM (Comando Operacional do Continente) era muito forte sob o ponto de vista militar e sob o ponto de vista de base popular. Tinha o apoio popular incrível. Custa-me dizer a respeito do Otelo que ele traiu. Porque o Otelo teve tanta importância e depois foi candidato às eleições e esteve nos GDUP’s (Grupos Dinamizadores de Unidade Popular), que eram uma forma de resistência. Os GDUP’s foram uma forma de resistência contra o poder que se estava instalado e tiveram importância mesmo como resistência para o poder não estar descansado na sua viragem à direita. Mas, se houve traições, foram essas.
Sente-se uma derrotada do 25 de Novembro?
De maneira nenhuma. Mas o pior foi que os oficiais revolucionários se sentiram derrotados. Alguns tiveram depressões. Não vou dizer quem e como, mas houve depressões importantes nos oficiais. Porque também era o ofício deles, não é? Eu não me não senti nada derrotada, nem nunca me senti derrotada até ser libertada da prisão em 82. Nem agora me sinto derrotada, sinto-me é perplexa para saber o que eu posso fazer, eu e toda a gente de esquerda. Mas não me senti derrotada. Felizmente, nem me deprimi, nem me senti derrotada. Fui fazer um comício a Viana de Castelo, que foi assim uma loucura: fui perseguida pela extrema-direita até ao Porto. Felizmente que eu levava carros de segurança. Mas ir fazer um comício a Viana do Castelo com este ambiente era preciso ter lata. Mas também eu tinha 30 e poucos anos, não é?
E essa perplexidade aumenta com o burburinho que tem havido à volta da data?
Alguns dos que fizeram não vão às comemorações. A Associação 25 de Abril já tomou posição, não vai. É um arrependimento. Estou a dizer isto a brincar. Se o Vasco Lourenço aqui estivesse, explodia [risos]. Porque o Vasco Lourenço tem um discurso como se aquele apoio todo à direita que houve não tivesse existido. Mas pronto, estou satisfeitíssima da Associação 25 de Abril não ir, não festejar. Porque sabe que aquilo foi a vitória de uns contra outros. E, portanto, eles não se dão como vitoriosos. Porque sabem também que a evolução que houve a partir daquele momento foi para dar o que existe atualmente.
Acho ótimo que eles não estejam presentes. No fundo, quem está a festejar o 25 de Novembro atual é a verdadeira direita.
Entretanto, acaba julgada, enfim, não porque aconteceu diretamente no 25 de Novembro, mas acaba julgada já em democracia.
Nós fomos julgados no Tribunal da Boa Hora com dois juízes de plenário, um deles ultra do regime fascista, o Figueirinhas. Fomos condenados a 16 anos, 12 anos e com o Ministério Público a pedir essas condenações, que era membro da Intersindical. Portanto, isto diz tudo a respeito de traições, isto diz tudo. Por acaso, tenho uma fotografia ótima com ele com o boletim da Intersindical na mão. Maia Costa, o Procurador. Parecia que se estava a viver os processos de Moscovo. Aí sim, essa traição, senti como verdadeira traição e como a repetição de questões históricas de traição. Eu, a dada altura da nossa prisão, fui tratada de tal maneira, enfiada dentro de uma carrinha, com o meu filho ao colo e com tal brutalidade, que eu pensei que tinha havido um golpe dentro do golpe, que tinha havido uma “pinochetada”. Fui muito maltratada durante 78, até o princípio de 79. E, depois, nas vindas ao tribunal, fui maltratada. Não fui espancada, um camarada meu foi. Mas fui maltratada em termos prisionais. Muito maltratada. Eu estive no segredo de isolamento oito meses. Nesse aspeto, sim. Agora, isto foi uma repressão política. Mas haver uma repressão política generalizada, como se tivesse havido um golpe de extrema-direita, não. E depois, quando fui libertada em 82, fizemos uma reunião, nessa altura, com os partidos que permaneciam de esquerda. Dentro da UDP tinha havido uma cisão e eram pessoas bastante racionais e moderadas. Os trotskistas ainda existiam, o Louçã. A LUAR ainda existia. E fizemos uma reunião, a que chamávamos Convergência. Mas a Convergência não foi para a frente. Depois fizemos uma coisa que foi importante e também nunca é assinalada, que é o Fórum Ecologista e Alternativa. Enchemos o Tivoli. É incrível como as coisas políticas que se passam não têm eco na imprensa e desaparecem. E depois, finalmente, os outros partidos de esquerda formaram o Bloco. Nós não entrámos para o Bloco. São amigos, mas nunca entrei para o Bloco. E atualmente, finalmente, ao fim de 50 anos, é possível fazer coisas de unidade.
Sararam as feridas?
Ao fim de 50 anos. A minha ferida política não sara, mas as pessoais sararam. Atualmente todas as organizações da Saúde onde eu estou é com pessoas do PC, é com pessoas do Bloco e pessoas do PC. E eu já fui a um fórum do PC com este secretário-geral, com o qual simpatizo muito mais do que o anterior. O Bernardino (Soares), que é a pessoa encarregada da Saúde, é sempre uma pessoa muito unitária. O Nuno Ramos da Almeida, que agora está de novo no PC, somos amigos. Houve um apagamento da reação do passado. Ainda há alguns parvos que não falam as pessoas mais à esquerda. É por estupidez. Só pode ser por estupidez. E com as pessoas do Bloco, evidentemente estou próxima.
Como é que se pode ser revolucionário hoje?
É complicado perguntar isso. Eu sou revolucionária porque ainda acredito que um dia a igualdade vai vencer. Isto é uma utopia, de facto. Mas nós precisamos de utopias. Aquilo por que eu verdadeiramente luto é pela igualdade. Porque saber que há desigualdade social e que se acentuou. Há desigualdade na Europa, há desigualdade nos Estados Unidos. As maiores desigualdades são na Rússia e na China. Caramba, para quem já foi comunista, acreditar na igualdade é, de facto, qualquer coisa que talvez seja romântico, mas a vida não acaba daqui a umas dezenas de anos, nem amanhã. Eu acredito que um dia possa haver igualdade, no sentido de isso também permitir que as pessoas tenham amizade e solidariedade umas com as outras. Eu não posso ter solidariedade com o Elon Musk. Ele é humano, como eu. O corpo dele tem a mesma constituição orgânica que o meu. Mas aquilo que os cristãos falam muito de compaixão, eu não tenho compaixão pelo Elon Musk, não tenho compaixão nenhuma. Portanto, eu acredito que um dia, pode ser daqui a centenas de anos, mas que um dia os humanos entre si tenham compaixão e solidariedade neste sentido em que não pode haver uma pessoa a morrer de fome num lado e outra a comandar o mundo com os novos meios que o ser humano criou. E, portanto, tenho essa utopia. A tática atual é não desistirmos, é continuarmos organizados. Portanto, tem-se estabelecido, ao fim destes anos, uma unidade e amizade, até há pessoas que são do PC que são muito amigas. Eu sou muito amiga da Conceição Matos, que foi uma mulher que sofreu muito na repressão, do Domingos Abrantes, que fez a famosa fuga de Caxias. Tenho organizado juntamente com o Museu do Aljube uma universidade sem exames, que é a formação das pessoas dos 18, 19, 20 anos nos temas fundamentais. Portanto, não paramos.
Tem ido às manifestações?
Tenho ido às manifestações, sobretudo da Vida Justa. Eu vou às da Vida Justa. As dos sindicatos, acho-as muito administrativas, muito formais, não me interessam. Portanto, é o que vê. As pessoas mexem-se. É muito complicado.
Que bandeiras têm faltado à esquerda?
Eu acho que uma luta que seria interessante era contra a burocracia. Podia ser uma luta nova da esquerda. Porque a burocracia é um inferno e dificulta, em parte, aquilo que deviam ser conquistas das pessoas. Na habitação, na saúde, na educação, porque qualquer procedimento dentro da administração pública é realmente... Julgo que isto seria um bom objetivo da luta da esquerda. Sem ser anarquista, não é? Porque eu acho que o Estado tem mesmo de insistir.
Tem arrependimentos?
Fazia as mesmas coisas. Não me arrependo das decisões que tomei, nem do percurso que tive, nem das dificuldades que tive. Não me arrependo nada. Zero. Posso ter feito uma asneira aqui ou acolá. O que eu digo sempre é que, sob o ponto de vista sentimental, só fiz asneiras. Não é só fazer asneiras. Tenho dois filhos magníficos e netos fantásticos, e isso é o saldo. E esse saldo é fantástico. Muito bom. Mas, ao longo da minha vida sentimental, fiz coisas que não devia ter feito. Mas, sob o ponto de vista político, não há nada que eu diga “que asneira que eu fiz”. Não.